A fábula dos três homens e do Muro

Por Antonio Fernandes

O primeiro homem tinha sapatos pretos, terno cinza. Vinha de família boa e bem falada. Estava embasbacado com a cena que se lhe apresentava. Era um jardim lindo, com flores e árvores majestosas. Um rio corria acolá e havia pássaros nos céus.
Aproximou-se lentamente. Não parecia ser real, não podia ser real, não. Mas haviam-lhe dito que era assim, e assim acreditava ser. Era tudo maravilhoso. O mundo era maravilhoso, perfeito, resoluto. Tantos reclamavam de tanto! e com barrigas tão cheias! Não poderia ser. Tudo mesmo sendo tão surreal parecia tão real, que nada além de realidade poderia por fim, o ser.
Ficou delirando. Apreciava a cena toda, que estática parecia, de tão bela. Olhava-a de dar inveja. Amava tudo o que via e era tudo tão lindo! Tão maravilhoso! Quão maravilhoso!

Meteu o nariz no muro de concreto pintado. Pois só isso o era: Uma gravura, caricatura, e nada mais. Contudo aquele homem, aquele primeiro homem, estava tão enfeitiçado pela cena, que só lhe poderia ser real. Mesmo o fato de sentir concreto, de não ouvir os pássaros cantarem nem da água do rio não se mexer não eram suficientes para convence-lo de que tudo aquilo era o que era: falso.

Um segundo homem passou ali. tinha óculos de grau e era obviamente um grande estudioso. Viu o primeiro metendo-se de nariz no muro de concreto. Olhou-o com certa ironia, apercebendo-se da situação ridícula a que o outro encontrava-se. Mas logo foi assaltado por uma dúvida: Era um belo de um muro, sim. Pintado de jeito tão belo que mais parecia real, mas, o que haveria atrás do muro?
Rápido voltou para casa, e buscou um, dois, trinta livros. Trouxe-os até os pés do muro e pôs-se a lê-los. Leu um, outro e outro. Até que deu por si: Empilhou todos os livros e os escalou. Subiu um, dois, trinta livros e olhou por cima do muro.

E a cena era vasta. Um rio negro, real, pútrido, corria entre fábricas e fumaça. Pessoas escravas carregavam grandes blocos de pedra e havia desolação, tristeza. Tudo era mal. Tudo era ruim. Crueldade e chicotes desciam pelas costas dos trabalhadores infelizes, e homens uniformizados castigavam-lhes. Era tudo negro e errado.
O segundo homem ficou petrificado, incapaz de se mover, defronte a  tanta angústia.

Logo vem um terceiro homem andando na rua. Terno, cartola, era ainda mais erudito e sábio que o segundo. Tinha até uma barba branca, que denotava-lhe um ar austero de boa idade. Enxergou a cena no muro e ficou consternado. Um infeliz metia o nariz no muro, não conseguindo distinguir o irreal do real. O segundo estava paralisado lá em cima, xoxo, sem conseguir se mover nem sair do lugar. Coitado! O terceiro homem havia escalado aquele muro, daquela mesma forma, haviam mais de 40 anos, e sabia bem o que prendia o pobre coitado lá em cima: A verdade doía! E como doía! Antes ser o tolo que mete o nariz no muro, a ser o tolo que escala o muro e descobre o que há do outro lado.
Mas... e se escalasse mais? Que tipo de coisas veria se escalasse ainda mais? Se fosse além de muro e além das nuvens de fumaça, que haveria de encontrar lá em cima?
Correu em casa e trouxe mais de mil livros. Mandou fretar um caminhão e trouxe-os todos pra lá. Jogou os livros no chão e pôs-se a lê-los. Leu dez, vinte, cem, quinhentos, dois mil, oito mil livros, e por fim soube o que fazer! Empilhou-os um a um e subiu. Passou o muro e viu a desolação, atravessava o muro e subia, subia cada vez mais. Quanto mais subia, mais longe alcançava à vista, e quanto mais longe via, pior tudo lhe parecia. Era arrasador. Via que os homens uniformizados, que antes aterrorizavam os escravos, também eram aterrorizados por algo grande, aterrador, um monstro! que era controlado... escalava mais um pouco. Era controlado por homens de terno, sim! Os homens de terno, lá longe, faziam festas em jardins forjados e paredes de mármore, e controlavam o monstro que controlava os homens uniformizados para que estes controlassem os pobres escravos. E tinha mais! Escalou mais um pouco, mais um bocado só, tentando ver mais longe, até que...

Atravessou a cortina de fumaça.
E acima de tudo aquilo, vislumbrou um céu infinito. Dez vezes dez milhões de estrelas. Um sol majestoso, galáxias, outros mundos. Era tudo lindo e maravilhoso e ele se descobriu, assim, tão pequeno de uma hora para outra. Tudo parecia tão vasto, que mesmo aqueles homens de terno, controlando o monstro que oprimia os opressores oprimindo os oprimidos pareciam nada. Alguns minutos passados e tudo aquilo mal parecia ter importância. O universo, o mundo inteiro era muito melhor, muito maior que aquilo! Ó! como é grande o universo! Como é grandioso e belo escalar tantos livros e ter oportunidade de tal vista, tão opulenta! Tão grandiosa!

E lá embaixo, no muro, vem vindo uma trupe de garotos. Garotos espertos e inteligentes. Viram o primeiro homem socando o nariz no muro. O segundo, paralisado olhando por cima do muro, e viram também uma pilha de livros que sumia lá no infinito e além.
Acharam aquilo engraçado, logo ficou-lhes óbvio que deveriam pular o tal muro e ver o que estava havendo.

Pulou um, pulou dois, pularam todos. E viram aquela primeira cena estarrecidos. Homens de farda espancavam pessoas inocentes! Ficaram revoltados. Pegaram o que viram pela frente e atacaram os homens de farda. Lutaram bravamente, mas por fim conseguiram vence-los e libertaram os escravos. Mas o perigo cresceu e o monstro veio atacar-lhes. Deu urros e grunhidos, berrou e afiou as garras, e apavorados, garotos e trabalhadores só tinham vontade de fugir. Mas um deles, ainda mais bravo e corajoso, fincou os pés no chão e não saiu do lugar. Não daria o braço a torcer pela criatura tão maléfica.

E eis que o monstro sumiu. Não havia monstro na verdade, mas apenas caricatura de monstro. Havia apenas medo, mas um medo inexistente, e bastou opor-se ao medo para que este não existisse mais. É que o tamanho de qualquer monstro não é o que conta de verdade. As criaturas mais apavorantes só são tão apavorantes quanto você as deixa ser. Quando o menino enfrentou-a, ela não teve opção se não sumir.

Tendo vencido o monstro, os nobres fugiram do olimpo, com medo de serem massacrados pelos trabalhadores enfurecidos.

Os garotos atravessaram os jardins, subiram os degraus e viram o grande salão onde os fugidos outrora festejavam. Lá no meio, tudo que havia era um símbolo religioso de cifrão. O que os nobres fizeram esse tempo todo foi cultuar aquele cifrão o quão bem lhes parecia. Prestavam-lhe homenagens e viviam por ele.  Um grande cifrão. Com a cabeça de Benjamim Franklin estampada nele. 100 dólares.

Era tudo ridículo e patético. Cansados daquilo os garotos voltaram onde tudo havia começado: no muro. Derrubaram-no e integraram ambos os lados. O segundo homem que assistia ao caos, ficou feliz. Com o fim das fábricas a nuvem desapareceu, e todos, não só o terceiro homem, puderam contemplar a imensidão do universo, percebendo então que não eram minúsculos em meio a tantas coisas superiores, mas faziam sim, parte de toda aquele universo imenso. Não era minúsculos mas partes do grande, partes do todo. Sendo assim também o todo. Também grandes.

O terceiro homem por fim desceu. Não era mais preciso subir tão alto pra enxergar as estrelas, e era ainda um bocado difícil ficar equilibrando sobre tantos livros e não cair e se machucar.

E assim viveram eles, felizes para sempre.





Comentários

  1. Gostei! Vou reler e tentar derrubar o muro, ou os muros. Ás vezes nos detemos exatamente porque preferimos não ver o que está atrás do muro, ou não queremos nos dar ao trabalho de empilhar os livros e deixar que nossa visão tenha um alcance mais amplo; somos uma pequena partícula no infinito universo, queiramos ou não, somos parte desse todo. E ficamos perplexos! Ou ficamos com o nariz enterrado no muro!? Em cima do muro é angústia.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas