A Jabuticabeira

Por Antonio Fernandes

Era uma vez um bonsai. Uma casa. Um homem.

É importante dizer deste, a princípio, que fez por onde.

Foi numa sexta feira lá pelas vésperas de sol a pino que se punha às justas horas do bondinho. Destino era o mercado. De começo comprou logo a dúzia de ovos e um bom queijo maturado. Uma cachaça e tabaco que enfiou no bolso.
O ano era 1969, de céu límpido e frio, como de praxe da capital mineira. Agosto.
 Andando pelos corredores abarrotados, uma novidade: Uma loja de plantas vendia uma espécie vinda dum lugar lá pelos lados do oriente: Pequena árvore de decoração. Especiaria rara e delicada. Bonsai.
Intrigado se embrenhou na loja, e diz o vendedor aquilo ser uma jabuticabeira, já aos seis, e custava lá seus muitos cruzeiros. O preço ele jamais recordou. Podemo-lo-dizer-te que era caro, ora pois. Não se via bonsais, muito menos frutíferos, muito menos com tal idade, disse-lhe o vendedor. Havia de ser caro.
Mas levou a planta ainda assim. Chegou em casa às completas. Jogou o paletó caqui no sofá, tirou a pequena árvore da caixa e levou-a a mesinha.
A tal mesinha, baixa de madeira firme e fina, se encontrava estrategicamente localizada próxima a janela. Recebeu o dito bonsai, milimetricamente entreposto de distâncias iguais, e com um sorriso triste, puxou pela cadeira e prostrou-se à frente da planta. Sacou  o cachimbo, um pouco de tabaco dos próprios bolsos e um par de fósforos desfez-se em fumaça, e fez primeira baforada. Olha para o bonsai e medita.
Triste.

Não se sabe porque, não se sabe pra onde. Fato é que ele sumiu. Versam os homens nos botecos (de botecos não carecia ali) que aquele homem foi à pular lá do viaduto Santa Teresa. Já, dizem as vizinhas maldosas, que dele se apegou um demônio e fe-lo entrar para o movimento Hippie. Tudo, ver-se-á, são boatos. Fato é que o dito cujo sumiu, e a casa ficou lá, por ninguém.

Largou a janela aberta quando saiu de casa. Quando veio a primavera, vieram também as chuvas, e de água a planta não careceu. Cresceu suas folhas, agora sem as malditas podeiras. Podia, sim, crescer o quanto quisesse. A pequena árvore, feliz, era enfim livre.
Mas logo drama se fez. Chegou ao fundo do pote. Suas raízes não tinham por escape sequer. Porém de força de vontade não carecia a planta, e entranhou suas raízes profundamente na tigela de barro, cravou-a na madeira da pequena mesinha, circulou os pés descendo até o eucalipto do piso, atravessava madeira e cimento. Suas forças não davam mais. Faltava-lhe nutrientes, faltava-lhe água. Já ali no ápice do inverno mineiro, já não podia mais...

Por fim terra.

E ficou feliz.

Encravou suas raízes. Cravou-as. Entranhou-as nos sulcos da terra. Deliciou-se deliciada de tanta beleza e endiabrada e cresceu. Enquanto tudo a volta se despedaçava, a Jabuticabeira subia. As paredes lascaram. Ratos vieram morar.. Baratas por todos os cantos. O velho piano afundado. Era o caos. Mas ela emergia em meio ao caos. Dava folhas, dava frutos, ficava verde e inverno após inverno ela sobrevivia as novas faltas de chuvas, e subia mais no calor do verão.
Podemos dizer que aquela jabuticabeira era sim feliz. Mais feliz, convenho, que muitos passantes que de olhos tortos julgavam aquela casinha de ninguém, e corriam apressados às suas vidinhas fulas. Que deselegância.

Certo dia a bola cai no quintal. Trio de garotos pula o muro e encontram o paraíso.
É preciso informar-lhe, caro leitor, que já não se falava do dito senhor que foi tantos anos buscar o dito bonsai. Ele partiu, a essa altura muitos anos, e dele não mais se sabia. Falava-se da casa abandonada, e não se falava mais.

Mas abandonada não estava agora. Bastou o trio de garotos cair ali para mudar as vezes do dia. As janelas quebradas, o cheiro de mofo e a fartura de gatos, ratos e baratas brigando por um ecossistema rico e farto era tudo que eles sempre sonharam.
Estabeleceram sua base de mulequagens e traquinagens. Dizer-vos eu que havia um convívio simpático entre a Jabuticabeira e os garotos. Mais que isso. Ela lhes dava seus frutos deliciosos e eles a deixavam em paz. Mas amavam-na. Ela era a verdadeira Senhora daquela casa, respeitavam-na mais que tudo. Deram a ela o nome de Árvore e fizeram dela uma igual.

Tempo passou, os garotos cresceram. Começaram a freqüentar menos a casa, até que pararam de ir ali. Abandonaram. E a jabuticabeira à solidão retornou.

Não podia dizer que era realmente triste. Vivera sozinha antes dos garotos, e se recordava orgulhosa de quando, ao quase morrer, conseguiu tocar o solo e sobreviver. Um triz. Mas agora já havia sido marcada. As paredes riscadas de jogos da velha. Um badoque caído. Uma vassoura que servira de cavalo. Uma bola murcha. Um pião. A árvore até sabia em baixo de quais lascas de madeira dispunham-se as bolinhas-de-gude por eles perdidas.
Ela sentia falta dos garotos, e como sentia.
Mas dali não saiu pois ali se fez. E ficou.

Belo dia ela escuta o roçar de pés no muro. Alguém cai forte do seu lado do quintal. ela se excita. Dois pares de pés caminham até sua mansão. Ela se excede. Porta range. O mais velho. Ela suspira de amor. Mas os passos que o acompanham são leves... uma outra forma adentra sua mansão, desconhecida.

Uma garota.

O garoto para ao centro da sala e encara a árvore mãe. Ama-a. Vai de encontro a árvore e a acaricia. Trás a garota pela mão, fala alguma coisa que a faz rir. Eles se deitam aos pés da jabuticabeira. Beijam-se, amam-se, ela geme e ele a morde. Se enraizam nas raízes à própria sorte, e ela os acolhe. Protege ambos e faz-se de ninho. Amor de carne que consome as unhas e com espinho, pedra, ou lá seja o que for, riscam no tronco um "A & L", que circundado pelo coração, torna a união imortal.

Seus meninos cresceram.

Agora contava-se dóus ou três dias para o roçar de solas aos muros. Vinham as completas, o sol pairando à linha do horizonte, e lá estavam eles. Certos dias ficavam até o raiar das laudes. Acolhidos pela árvore eles se amavam.
Noutra vez outra novidade: Vem os três garotos novamente. Pegam o bodoque do chão e atiram pedras no relógio pendular. Riem. Contam piadas sentados ao pé da árvore. O sol se põe e se vão também os três.
Certos dias vinha apenas o mais velho. Se sentava nas raízes do tronco, puxava o livro, o cigarro e a cachaça. Lia até não haver mais luzes e ia embora.
Bons eram aqueles tempos.
Suspira.


E sumiram. A Jabuticabeira já não sabia porque. Não voltaram a aparecer. Se foram. Passou semana, mês e tempo sem que não se fizesse argumento. A agonia torturava a planta. Onde estavam seus meninos? Será que por fim haviam mesmo à abandonado? Perguntas, e de perguntas ficou, sem as respostas por tempo.


Noite de chuva roça o portão. Caem leves pés. A porta se abre em rangido. Lágrimas. A garota está grávida, espancada e chora.
Ela abraça a Jabuticabeira e conta. Seu pai finalmente descobrira-lhe o segredo: Estava fecunda de vida, mas nunca a vida lhe havia sido tão cruel. O pai a espancara, e com medo da morte, fugiu. Veio para a Árvore, e implorou para que a Árvore lhe protegesse, deitou e dormiu.
Acordou cedo, beijou as marcas do amor nas cascas da Jabuticabeira, e fraterna saiu.

Passa tempo sem que venha ninguém. Não se há palavras a dizer sobre a dor da Planta. Ninguém voltava ninguém se via, ninguém dava-lhe sequer notícia. E então um salto do portão desperta-lhe. Mas o sentimento é duro.
Ela percebe, veja bem. As plantas sempre vem a perceber sentimentos. Percebe que uma agonia resoluta caminha pela relva alta do quintal. Até as toupeiras sentem e se enterram mais fundo no solo. Os pássaros param de cantar por momento. A porta range e o garoto entra.
Rosto sujo de lágrimas, mas delas já não há. Ele caminha até a Árvore, acaricia e diz.
Pai da garota matou a esposa. Pai preso. Mãe morta. Ela num orfanato.
Enlouqueceu. Ele fez de tudo para salva-la, jurava. Gritara, gemera, chorara. Até tapas, ele se recordava arrependido, havia dado nas bochechas dela para tentar desperta-la. Mas não havia jeito. A garota olhava para o nada, abraçava a si mesmo e soluçava. Ele a perdera.
Não era opção a vida sem ela, já que a falta do amor rebaixava a vida a condição de existência, por isso ele veio despedir-se. Ia se recostar no último canto que lhe restava. No último canto, dizia ele, que não haveria mais dor e agonia. Se recostaria nos cândidos da morte, e lá ficaria.

Levantou e se foi. E a Árvore chorou.
Dias passaram e ela chorava. Chorava dia e chorava noite. Suas frutas vieram secas, e suas folhas estavam flácidas. Nem a primavera à animava. Não viu mais ninguém, claro, mas nem precisava. Sentia, como eu já disse que as árvores sentem, que o garoto já não se encontrava mais aqui. Ele se foi. Mas frustrou-se. A árvore podia sentir um remorso que pairava no ar. O garoto estava lá, mas não estava. Chorava no âmago do nada pelo amor que morreu sem morrer, e por esse amor se matou. Remorso e tristeza, tudo isso a árvore sentia, e chorava.

E num certo dia vem ela. Garota. Pula o portão. Entra pela porta. A gestação já avançada. Olhar vago. Chega ao pé, ajoelha-se de frente para o coração do tronco e chora. Chora à choro alto e grita, berra e se desfaz. Uma dor de tal dor que não há mostra que se faça.
Acalma-se. Trouxe uma corda e um livro. Senta-se e põe-se a ler. As páginas correm, ela soluça numa parte, ri na outra e perto do fim do dia fecha por fim o livro, recosta-o nas raízes do tronco, joga a corda num dos galhos mais firmes e se pendura.

Aos pés da árvore, "Romeo e Julieta" jaz abandonado.

E a Árvore Grita.

Berra. Chora. Ruge e se desfaz. Sua tristeza é de tal modo forte que os camundongos fogem, as baratas se escondem e o velho gato que morava na lareira saiu para dar uma volta. E ela chorava. Berrava, gritava. Gritava contra o mundo injusto, mundo maldito que levou dela suas crianças.
No seu tronco a garota pendurada pela corda tem as pernas num banho de sangue, e no chão o feto à cor de groselha jaz abandonado. A Árvore treme. Geme. Chora. Os pássaros levantam voo e os cães  uivam. A natureza de luto.

Seus gritos se tornam choro. Seu choro se torna soluços, e quando o soluço se desfaz ela sente uma nova energia no ar. Os espíritos se reencontram, a magia se faz. Felicidade outra vez. As almas dos dois voam com uma pequena, divertida e sagaz alminha ao meio. Sorriem, enfim juntos novamente. Os três dançam ao redor da Árvore, que devolve o sorriso.
Eles vivem lá. Nas brisas e nas lufadas. Vem com os ventos quentes da primavera visitar a Senhora em sua casa. O bodoque esta lá. A calcinha também. O velho piano afundado e o gato espreguiça na chaminé.
E a velha jabuticabeira, enterrada fundo nos sulcos do seu próprio lar, Senhora de sua casa ainda está. Dizem que suas frutas possuem um doce especial, e que suas flores de primavera são as mais bonitas e mais elegantes de todas as Jabuticabeiras que já se viu por lá.
Dizem. Dizem. E tudo isso e ainda mais dizem. Mas a verdade ver-se-á, nunca é certa. Para dar-se por certa, só indo lá, Rua dos Bobos, N° 0.
Dizem. E quando eu morrer ainda dirão.

É uma bela história, espero que continuem dizendo.

E morreram felizes para sempre.


Comentários

Postagens mais visitadas