Grito

Por Antonio Fernandes

Estou no inferno
mas a faca não tem gume
para cortar meus braços
meus gritos destroem
minha garganta
meu ódio suplanta
meu ser
corrói minha alma
eu estou enlouquecendo
vou matar
como se nunca tivesse existido
vou decepar
cada minucia disso
que já fui eu
não sobrou nada
não sou ninguém
os carros não se movem
estou enjaulado
nessa caixa de metal
a faca não corta
meus pulsos
fraca demais
mal atravessei a pele
quero mais fundo
quero sangue
quero dor
quero dor como nunca teve
dor no corpo para apagar
a dor do peito
merda
eu odeio essa desgraça
queria que nada disso
nunca tivesse acontecido
queria que não tivesse passado na minha frente
que não tivesse pego meus cigarros
queria que não tivesse me mandado palavra
ou me dado atenção
não queria nada disso
queria voltar no tempo
e continuar bobo como era
esse amadurecimento
destruiu meu corpo
não me amadureceu
só me rachou
rachou de uma maneira
que eu queria estar morto
penso em virar o carro e capotar
penso em enfiar essa faca na perna
penso em arrancar as grades da janela
e pular de cabeça
quero que isso pare
eu grito
gritei feroz no carro
gritei feroz na cama
as lembranças arrastam meu grito mais longe
até faltar fôlego
vou continuar gritando
quero que isso saia
saia inteiro, sangrando
pela garganta
que eu cuspa esse nojo de mim
e que vá embora
meu braço arde da faca patética
que usei pra tentar me cortar
minha capacidade de auto destruição cresceu muito
isso, preciso admitir
melhorou
meus surtos são cada vez mais fundos
meu ódio é cada vez mais amargo
minha decepção chegou num limite
eu odeio tudo
eu odeio todos
e mais do que tudo
eu odeio a mim mesmo
quero me machucar
eu mereço essa merda
preciso pagar pelo crime
de ter deixado essa merda
de palavra escrota
me dominar
e me levar até esse lugar nenhum
onde que o diabo
tenha medo
deste monstro que me tornei
é negro
o ódio
que me rasga
é preto
o lugar que quero chegar
quero nada
quero paz
dormir pra sempre
e não ter que acordar
que me enterrem e ninguém vá me visitar
pra que minha alma não seja atormentada
pelas pessoas podres
que passaram por aqui
e me transformaram neste demônio
que me atormenta agora
não existe Deus
nunca existiu
só existe o diabo
e ele sou eu
e ele me atormenta
de dentro da minha cabeça
ele me decepa o crânio e me faz chorar
não esse chorar fofo estúpido
de pessoas idiotas
um chorar de ódio
com gritos até acabar o ar
quero cortar meu rosto
com faca
sangrando
pra que essas lágrimas de merda
salgada
ardam enquanto escorrem
quero quebrar minhas próprias pernas
com um pedaço de pau
pra que eu fique travado
por opção
quero ouvir meus ossos estalarem
quero arrancar minhas tripas de dentro de mim
rasgar elas
e escrever uma poesia igual a essa
numa parede branca
com meu sangue
pra que aqueles que lerem
saibam que essas palavras importam
enquanto se pensa em suicídio
como forma de chocar os outros
o suicídio não sai
não há coragem suficiente num ser
para se matar pra provar seu ponto
a alguém
mas quando se está sozinho
como eu estou
sem sentir proximidade
ou qualquer coisa que seja afeto
de quem quer que seja
quando se está realmente sozinho
quando palavras e desabafos
não são mais suficientes
quando o tempo todo
é como se estivesse numa caixa de vidro
coberta por qualquer coisa
que ninguém pode ver
isolado
gritando
se jogando de cabeça
nas paredes
arranhando o próprio corpo
e se cortando com faca
quando se está preso em si mesmo
em agonia colossal
se fazendo arrancar os cabelos
dar tapas na própria cara
se esfaqueando
quando se está assim
como um animal preso numa jaula
que grita e não é escutado
que chora e ninguém lhe protege
quando se está verdadeiramente sozinho
a coragem para por fim a tudo
e dormir o sonho dos sonhos
fica cada vez mais contemplativa
ela é riscada no peito
quero fazer com ferro quente
e escrever minha única tatuagem
bem no centro do abdômen
vou rabiscar "eu errei"
com uma barra de metal
aquecida em chamas
retorcida vermelha brilhando
"eu errei"
errei em tudo
sou o homem mais fracassado
não vai vir ninguém em socorro
porque aqueles que querem socorrer
são incapazes de ver
a situação podre
que me encontro agora
eu queria estar morto

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