Marte e o Jardim de Rosas

Por Antonio Fernandes

Esse texto é uma nova história no mesmo mundo de Sárula e o Criador.
Caso não tenha lido o primeiro, confira-o clicando aqui.




Era um mundo seco.

Árido.
Onde nada crescia e nada brotava.
Tudo que havia era areia em todas as direções. Areia salgada.
Como se um oceano inteiro ali tenha estado e já não tenha estado mais.

 O Sol engolia o céu como engolia toda a eternidade. Não era um Sol compassivo e caridoso. Não. Era um Sol julgador e onipresente. Que nada deixava viver nem crescer. Um sol que punia a vida como punia a morte. Era vermelho escuro, como se estivesse cansado e enfurecido.

Do meio da areia emergiu um ser. Um ser maltrapilho como se tivesse estado ali sempre. Cuspiu a areia da boca e estava infestado dela. Havia areia nos ouvidos e dentro do nariz. Seu cabelo enroscado preto mais parecia cinza. Na verdade, aquele ser inteiro parecia completamente submerso em areia.

Esfregou os grãos do rosto e abriu os olhos. Sacudiu o que pôde mas todo seu esforço foi tão patético quanto possível.

O calor era insuportável. Mais do que ele podia aguentar.  Agachado no chão tentava encontrar forças. O vento levantava dunas inteiras fazendo tudo parecer uma névoa. Quanto mais grãos tirava do olho, mais pareciam haver.

Num relance viu uma porta vermelha. Estava aberta e dava do nada para lugar nenhum. A porta se fechou e sumiu.

O vento pareceu ceder e como que de nenhum lugar, Alguém surgiu.

Vestia uma capa preta.
 A Criatura parecia sequer notar toda a areia a volta.
 Era como se o calor, a tempestade ou o que quer que seja não a atingissem.
 Atingiam sequer Sua barba loura impecável e seus olhos diamantados.
Dentro dos quais parecia haver universos inteiros.

O homem maltrapilho mirou aquela estranha figura, ainda ajoelhado e confuso.

A figura abriu um largo sorriso.

- Você é perfeito!

- O que? - Respondeu engasgando com uma língua tão seca como couro curtido.

- Perfeito. Eu disse que você é tudo que eu poderia esperar.

Nada daquilo fazia nenhum sentido. Tentou levantar mas suas pernas vacilaram e voltou a cair de joelhos.

- Tenho planos excelentes para você. Que tal se te chamarmos de Pítos? Esse parece um bom nome! Você não tem algum nome do qual eu deveria saber não é?

-É.. não. Eu não sei se tenho um nome.

- Isso! então Pítos está ótimo! - Gritou, aumentando ainda mais o largo sorriso e abanando os braços, que seguravam um objeto pontudo em haste com ponta de carvão. - Você me parece inocente demais Pítos. Sente um bocado de liberdade! Para os planos que tenho para você, é importante que saiba o valor da liberdade antes de sentir falta dela!

Gesticulou o objeto na direção dele.

Asas surgiram. Um bico. Penas de ouro. De repente não era um homem maltrapilho, mas um grande falcão dourado.

-Dourado está ótimo, vê? É a cor dos privilégios!

Livre de toda a terra seca que lhe prendiam amarras ao chão, bateu asas e voou. Subiu aos céus e sentiu o vento forte nas asas. Vento que antes lhe castigava e punia, agora era seu amigo. Nadava pelas correntezas como se estivesse no mar. Lufadas levavam-no mais alto. Na medida em que subia, percebia que a dimensão do deserto era imensurável e sem fim. Muito ao longe, uma grande árvore se erguia no meio do nada. Uma grande árvore de frutos negros.

Suas penas começaram a cair. Suas asas foram se tornando braços e se desesperou. Na medida em que voltava a forma humana e despencava, correntes ataram-lhe a perna e quando viu, estava novamente no chão. Novamente maltrapilho. Novamente encerrado.

- Que te parece a liberdade, jovem Pítos?

-Eu não quero ser assim! Por favor! Me deixe voltar a ser o falcão!

A Criatura deu uma larga gargalhada.

- Liberdade é ótimo não? Mas é um sentimento muito simples. Estamos aqui para criar um sentimento muito mais complexo e você Pítos, me ajudará com isso!

E virou as costas e saiu andando, gesticulando aquele objeto pelo ar como uma varinha mágica.

Antes que pudesse gritar, uma grande Tempestade de Areia de milhares de metros surgiu vindo em sua direção. O desespero tomou conta de sua alma. Estava atado ao chão pelas correntes. Com areia na boca e nos olhos, sentia um cansaço monumental nas pernas e braços e não conseguia se mover.

Foi tragado por ela e tudo ficou preto.




Acordou.

O deserto era o mesmo, mas o vento parecia ter cessado e a criatura estranha desapareceu. "Teria sido um sonho?" Pensou consigo mesmo. Não conseguia se lembrar quem era ou o que estivera fazendo. Lembrava-se do nome que a criatura lhe dera. Pítos. Seria esse seu verdadeiro nome?

Dos confins do deserto, onde as tremulações se fazem miragem, um grupo de cavaleiros se aproximava. Vinham rápido em sua direção. Abanou os braços e gritou pra eles, mas suspeitava que já o tinham visto e chegavam rápido. Pela primeira vez o medo lhe comeu o estomago.

Antes que pudesse falar, um dos cavaleiros lhe jogou uma corda que o atou pelos pés.

Foi arrastado pela areia. Gritos de gargalhada eram entreouvidos dentre o barulho ensurdecedor de ser sacudido e socado ao chão, na medida em que o cavalo galopante o arrastava incessantemente.

Suas pernas e braços, antes cansadas, agora eram carne viva. A areia que antes lhe incomodara, agora foram navalhas que lhe arrancaram pele. O sal forte fazia tudo doer como se mais.

Um dos cavaleiros desmontou, se aproximou e o chutou na barriga.

Perdeu completamente o fôlego. Seu pulmão esvaziou num espasmo e uma dor lancinante lhe atingiu o fígado.

Antes que pudesse se recuperar veio outro chute. E outro. Ergueu os olhos para o alto o suficiente para ver um punho lhe descer no olho. O sangue empapou os olhos já aterrados de areia. Estava completamente cego do olho esquerdo.

Se encolheu como pode da chuva de chutes, socos e risos que desabaram sobre seu ser.

-Que deu em você, lixo? Estamos te procurando a tempos!

-Eu sou.. Eu sou Pítos. - Exclamou com voz trêmula.

- Você deu um nome à si mesmo, lixo? escravos não tem nome. - Foi arrastado pelo pé, um chute lhe acertou o maxilar e conseguiu sentir dentes saindo antes de apagar completamente.





Acordou acorrentado.
Tremia. Era noite e era frio. Estava enfiado num buraco apenas o suficiente para caber um homem sentado. Acima de si, grades. Não conseguiria esticar as pernas e braços, mesmo se quisesse. Não poderia. Elas estavam completamente destroçadas, em carne viva e areia salgada. Hematomas roxos eram largos em seu peito. Seu olho era uma massa de sangue coagulado e mais areia.

Sentia uma sede descomunal.

Alguém parou acima do buraco e mijou.

Reativamente fez tudo que pode para aproveitar cada gota de água amarela que desabava no seu rosto. O homem repugnante acima dele ria e era possível ouvir mais risadas ao fundo. Bebeu o que pode e aquilo lhe recobrou uma ínfima consciência.

Os homens saíram da sala discutindo qualquer coisa e rindo. Não era capaz de compreender nada, atordoado como estava.

Desta vez molhado, o frio foi mais forte. Apagou e recobrou a consciência diversas vezes. Talvez tenha tido febre. As feridas foram virando cascas e ao menor movimento se quebravam de onde jorrava mais sangue.

Passou noite e passou dia. Volta e meia alguém lhe jogava o que diziam ser o resto da lavagem dos porcos pelo buraco. As vezes jogavam um balde d'agua e ele ficava lambendo os braços para aproveitar cada gota de água. Raramente alguém se aproximava do buraco.

Sabia que era dia ou noite pela simples temperatura. As noites eram de um congelar lancinante e os dias secavam-no de calor. Os lábios rachavam e os olhos ficavam secos. Não sabia quanto tempo estava no buraco. Talvez tenha sido uma semana ou um mês.

Um dia alguém abriu a portinhola.

- É hora de pagar pela sua fuga, lixo.

Um homem grande o arrancou pra fora num puxão. Suas pernas mal foram capazes de ser esticadas, tanto tempo passaram limitadas ao espaço confinado. Foi sendo meio arrastado meio carregado por corredores.

Por fim deu num pátio largo. Uma multidão ovacionou quando o viu. No centro havia uma espécie de mesa com grilhões.

Havia um homem com uma roupa engraçada e uma longa barba cinza sob um púlpito. Era um velho especialmente feio, tão feio como a voz que ressoou quando começou a ler um papiro razoavelmente longo.

- Nosso Deus senta no trono e está no meio de nós. Dos pés do palácio ele observa-te. Vós a trabalhar. O chicote Daquele que Tudo É golpeia através das mãos do nobre guerreiro que lhe golpeiam. Tua vida é servir A ele. Por isso trabalhem e o olhar punitivo de Nosso Deus não cairá sob seus ombros, como caem a este esterco de lixo, saído da merda que tentaste fugir de Deus. Não é possível fugir a Deus. Guardem estas palavras! Voces serão encontrados e castigados! - Suas mãos foram atadas aos grilhões da mesa. - Dezessete chicotadas. Para que na dor sejais purificado. Enquanto o chicote comer tuas costas, a purificação divina cairá sob você, e queiramos todos que com intervenção Divina, você se torne benigno e compassivo. Aceitas o trabalho que lhe é oferecido! O pão mofado que lhe chega a mesa! A água suja que tens para beber! Estas são as coisas que você merece.

Um largo chicote de couro lhe estalou as costas e abriu um boca sangrenta diagonal. Ponta a ponta.

A princípio é como se a dor não viesse.
E de repente veio. Arraigada do fundo da alma.
Comeu suas entranhas e sentiu a pontada no fundo do peito.

Outra chicotada.

Emitiu um urro de dor.
O velho continuava falando coisas no púlpito. Mal era possível escuta-lo. A multidão gritava ensandecida.

Outra chicotada.

O sangue lhe escorria as pernas e fazia poças de sangue sob seus pés.
Entrou num transe de dor. Gritava mas não escutava os próprios gritos.
Suas mãos apertavam a corrente como se apertassem a vida ao corpo, mas não sentia correntes. Não sentia o chão, não sentia os pés. Estava deitado sob a mesa de pedra e o chicote lhe estalava as costas. Olhos fechados. Dor. Dor que rasga a alma. Dor que rasga pele. Carne. Ossos. Que lhe desfigura as costas.

Sonhou com a porta vermelha no meio do deserto. Estava lá, fechada. Conseguia ve-la claramente agora. As dunas voavam areia como numa tempestade, e a porta como que intocada. Era dum vermelho escuro, como que tocado de leve pelo negro. A tempestade de areia atravessava o deserto, devorou e desapareceu a porta. Ele era o falcão perdido na tempestade. As asas enferrujadas não eram douradas, mas pretas. Estava cansado e perdido.

Tudo se fez branco e de repente, acordou.





Deitado à uma mesa uma mulher lhe lavava os ferimentos.
A pele negra brilhava.
Tinha olhos de jabuticaba que fitavam-no num sorriso de pena.

O pano branco úmido ardia, mas reconfortava sua dor. A areia era lavada e dava espaço para uma pele lisa rasgadas por sulcos de carne e ossos

A consciência se foi.

E voltou. Estava enfaixado. faixas castanhas cobriam-lhe o que foram rasgos do chicote, de ser arrastado na areia, de ser espancado. Chutado. Os cotovelos ralados do buraco em que estivera.

A mulher ainda estava ali. O pano na testa aliviando-lhe a febre forte.

Chorou. Pela primeira vez chorou e verteu lágrimas como num rio. Não chorava pela dor nem pela humilhação. Não chorava pelo que sentira ou pelo que sofrera. Sabia o que era liberdade, pois havia sido um falcão dourado, ainda que por um breve momento num sonho. Conseguia entender o que era o medo, pois sentira medo muitas vezes, em contraste com a ausência daquela liberdade que outrora tivera. Não chorava por nada disso.

Chorava pela caridade. Tudo que havia visto eram chicotes e punhos. E aquela mulher, criatura maravilhosa, lhe demonstrava carinho. Ajudava-o. Lavava seus ferimentos e se importava com ele. Era complacente.

- Porque me ajuda?

- Ninguém deveria sofrer isso que você sofreu. - respondeu ela num sorriso acanhado.

- Mas tentei fugir, ainda que não me lembre. Parece que mereci isso.

- Não existe erro que condene alguém a sofrer na sua dignidade. Acredite em mim, eu sei.

-O que aconteceu?

Ela sorriu e não respondeu. Continuou afastando-lhe a febre. Ele olhava o teto de palha de uma casa simples. Panos estavam jogados no chão como camas. uma fogueira acesa no centro com uma chaleira fervia.

- Qual seu nome?

-Nós não devemos ter nomes, dizem eles. Somos vivos para servir.

-Você deve se chamar por algum nome.

-Sou Marte.

-Sou Pítos.

-Prazer em conhece-lo, Pítos.






Ficou ali alguns dias. No começo não conseguia se levantar e a febre que ia e vinha lhe apagava a consciência. Alguns dias depois já conseguia caminhar. Saiu algumas vezes para andar pela noite. Era uma grande vila de casas bem juntas, feitas de pau a pique e telhados de palha. As pessoas que passavam eram tão sujas de areia quanto ele tinha estado. Andavam olhando para o chão submissas. Não se via crianças, e quando se via, tinham olhares de medo e escondidas pelos cantos. Homens grandes com lanças caminhavam em duplas e as vezes era possível ve-los batendo em alguém.

As pessoas não conversavam nem pareciam se encontrar. Pelo menos não nas ruas.

Conversava com Marte quando ela chegava do trabalho pela noite. Eram breves momentos, já que ela parecia exausta e logo se banhava e dormia. Todas as outras pessoas pareciam viver submersas em areia, mas não Marte. Não. Ela todos os dias se limpava com o pano úmido e sua pele reluzia em dignidade.

Talvez por isso a achasse bela. Mas ela parecia realmente ser especialmente bela. Os cabelos cacheados negros desciam até o fim das costas. Era divertida e tinha um sorriso lindo, de dentes bem brancos. Sempre positiva, tentava anima-lo o máximo que podia.

- Logo você poderá voltar a trabalhar. Pode ficar aqui por um tempo se quiser, já que não tem onde ir.

Ele chorava ainda pelas noites, sozinho. Chorava lágrimas boas, de quem é grato a bondade de outro. Por quem foi salvo pela caridade. Essas lágrimas aos poucos se convertiam em amor, e se pegava ouvindo Marte sem ouvir, mas prestando atenção em como os lábios se movem, os olhos lhe fitam. Como as mãos gesticulam e ela arruma o cabelo jogando-o de lado. Adorava quando ela fazia isso.

- Você já parece forte e os vizinhos falam. Acho melhor se apresentar pra trabalhar. Há um amigo meu que virá te buscar. O nome dele é Breda. É uma boa pessoa, vai cuidar de você na montanha.

Ouviu, sorriu e não respondeu. Parece que seu oasis de tranquilidade vinha chegando ao fim.




Abriu a porta.

- Você deve ser Pítos. - Um jovem de olhos verdes e barba preta e bem cortada sorria pra ele da porta.

-Você deve ser Breda, Marte me falou muito sobre você.

-Sou sim! Você já parece menos morto do que quando te vi na praça. Aliás, até vivo demais comparado com as outras pessoas daqui. É melhor ir até os soldados antes que eles venham até você.

Juntos caminharam pelas ruas.
Por um tempo pelos lugares onde ele já havia ido em suas andanças. Logo mais as ruas e os rostos já não lhe pareciam familiares. No topo de um monte havia um grande palácio dourado. Duas esfinges gigantescas ladeavam-no, como se estivessem em guarda. Ao fundo, grandes pirâmides de pontas de ouro, brancas, pintavam a paisagem.

- Porque alguém moraria num lugar tão grande enquanto outros moram em casas tão pequenas?

-Aquela é a casa de Tutancamom, o Deus Vivo. Ele é o Estado e o dono de Tudo o que há. - falou como num tom de deboche.

- Ele é mesmo um Deus vivo?

- Ele diz que é. Mas tirando o que dizem os conselheiros e os porretes dos soldados, não vi nenhum poder especial dele até hoje. - Falou rindo. - Ele tem uma esposa. Essa sim é uma Deusa. Pelos Deuses Antigos! É a mulher mais linda que já vi, e olha que só a vi umas três vezes e bem de longe. Dizem que é completamente apaixonado pela mulher.

- Qual o nome dela?

-Petras. E tem dois "filhos-deuses" também. Nunca ninguém os viu aqui fora, mas quem trabalha no palácio diz que eles ficam espetando os escravos com espadas enquanto trabalham.

Conversava com Breda e fitava-o nos olhos. Aqueles olhos não lhe eram estranhos. Pareciam com olhos que havia visto no sonho, mas mais opacos. Talvez o formato do rosto lembrasse aquela criatura das areias. Não. Estava delirando.

- Dois bastardos desgraçados, é o que são. São a razão de Marte ter sofrido tanto nos últimos tempos.

- O que aconteceu?

- Ela trabalhava no palácio, vê? Num dia derramou uma taça de vinho nas vestes de um dos merdinhas. Ele gritou e fez um escândalo. Naquele dia os soldados foram até a casa e pegaram o filho dela. Tunim tem 9 anos e é uma criança. Ele entrou no palácio com os soldados, chorando, e não o vimos mais.

- Deve haver alguma coisa que possamos fazer.

- O Deus vivo pega o que quiser, meu amigo. Nós nos escondemos da tempestade enquanto pudermos.

Chegaram a uma grande tenda. Havia muitos soldados e muitos homens suados e cansados. Um homem de vestes amarelas ridículas sentava numa cadeira alta e decidia as vidas de quem era levado até ali.

Entraram os dois numa longa fila e esperaram calados. Pouco a pouco se aproximaram do homem de amarelo.

- Ele foi castigado por fuga meu senhor. já melhorou e gostaria de voltar a dar a vida pelo Deus Vivo.

- Você se arrependeu dos seus erros, lixo? - fitou-o com um olhar de tanto poder e escárnio que não pode fazer mais que fitar o chão.

- Sim, senhor.

Soldado, leve estes homens para a montanha então. Começarão a trabalhar imediatamente.






O caminhar até a montanha era longo. Logo saíram da cidade e enveredaram por uma estrada de pedras. Ao longe uma grande montanha se aproximava. Ao lado dela também se aproximavam as grandes pirâmides de pontas de ouro. Eram maiores do que pareciam de longe, e quanto mais se aproximavam, maiores eram.

Mais perto, homens arrastavam grandes blocos de pedra, levando-os para o que parecia ser uma nova pirâmide em construção. Outros maltrapilhos cortavam os blocos da montanha.

Subiram por trilhas e estradas cada vez mais alto, onde os homens cortavam os blocos. A vista dali era espetacular. As piramides, o palácio, as Esfinges. E a cidade de escravos no pé de tudo, se espalhava como uma plantação negra e suja. A volta de tudo, deserto.

Foi colocado para trabalhar. Ele e Breda escavavam pedaços de rocha num trabalho lento e monótono. Parecia não haver fim. Por fim, quando as rochas gigantes se soltavam e descolavam, eram carregadas por mais escravos morro abaixo.

O dia tinha pouca novidade, exceto quando alguém era soterrado por um desmoronamento ou esmagado por uma pedra. Isso acontecia na verdade com razoável frequência. Os corpos mortos eram jogados num grande buraco em pilha. As vezes um trabalhador desabava de cansaço e era jogado lá também.

Os soldados espancavam algumas pessoas por nenhuma razão aparente. Volta e meia Pítos era chutado ou socado por nada. Viu Breda levar uma chicotada da mesma forma. Eles não reclamavam, não falavam. Se encolhiam, apanhavam, e continuavam cavando.

No fim do dia estava exausto. Quando o sol grandioso e laranja se encolheu atrás das dunas, Um trompete soou e os escravos começaram a caminhar para a estrada, de volta a cidade. Os soldados empurravam alguns para que fossem depressa. Algo absolutamente inútil, já que nenhum deles tinha forças para caminhar de forma que não devagar.

Ele e Breda caminhavam lado a lado, em silêncio. Parecia uma distância muito mais longa agora que estava exausto.

Chegou até o casebre de Marte, e ela lhe atendeu com um sorriso de pena.

Lavou-o com o pano e tirou a poeira do corpo. Estava completamente sujo e suado. Alguns ferimentos ainda não perfeitamente cicatrizados estavam novamente abertos.

Enquanto ela o lavava apagou de exaustão.








O dia seguinte seguiu a mesma rotina. E de novo. E de novo. Acordava, comiam pão e bebiam água. Encontrava-se com Breda no cruzamento e caminhavam com os outros até a montanha. Cortavam pedras e mais pedras. Levavam socos e se encolhiam. Depois cortavam mais pedras.

Um dia um andaime desabou e matou muitas pessoas. Os soldados ficaram mais agressivos naquele dia.

Aos poucos foi ficando mais forte. Não chegava tão exausto e era capaz de conversar mais tempo com Marte.

Contava a ela sobre a vista da montanha e ela adorava. Era um pequeno prazer no meio de uma vida de desprazeres. Estar com ela.

Sentia saudades de ser um falcão dourado voando. A perfeita sensação estasiada de liberdade. Sonhava com liberdade. Fugiria por ela, se fosse preciso. Mas amava ainda mais Marte.

Todos os dias escravos jogavam trouxas de pão e deixavam água na porta das casas. Eles chamavam aquilo "trouxa família" e era menos do que o suficiente para uma pessoa viver, quanto mais uma família. Mas aceitavam de bom grado e comiam como podiam.

Certa vez um vizinho abateu um porco clandestino e a festa foi maravilhosa. Vários rostos familiares estavam lá e  beberam água e comeram carne. O churrasco atraiu atenção dos soldados que invadiram o lugar. Marte e Pítos fugiram por pouco e riram quando despistaram os soldados. Nunca haviam comido tão bem!

- Venha comigo até a montanha! Preciso te mostrar a vista do lugar!

- Mas é o meio da noite! isso é muito perigoso!

- Confie em mim.

Pegaram trilhas sinuosas para desviar da estrada principal. Passaram arrastando pelos guardas que sonolentos se aprumavam pelos cantos da base da pedreira. Escalaram as rochas e foram até o topo do monte onde sequer Pítos jamais havia ido antes.

A lua colossal iluminava o topo das piramides, de ouro puro. Iluminava as dunas do deserto e ao longe, era possível ver o semblante das tochas que iluminavam a faixada do palácio.

- É lindo.

- É sim - disse Pítos num sorriso.

Ela o olhou nos olhos.

- É lindo como você.

Ele tentou responder, mas foi beijado. O amor que lhe crescia aos poucos transformou-se numa trovoada de cavalaria. Seu coração saltou ao peito.

Entre mordidas e mãos e pés, estavam pelados no topo do mundo contemplando todo o mundo que conheciam.

- Eu sei sobre seu filho.

- É, eu imaginei.

- Eu vou salvar ele para você.

Ela deu um sorriso triste.

- Vou invadir o palácio e salva-lo para você. Vamos fugir para algum lugar melhor que aqui. Deve haver algum lugar!

Ela o beijou como que para faze-lo calar. Juntaram os corpos e fizeram amor de novo.





Dormiram e acordaram com o raiar do sol. Voltaram as escondidas para a cidade. Se banharam com o pano e saíram para trabalhar.

Pítos encontrou Breda no lugar de sempre.

- O vizinho do porco foi pego pelos soldados. Ele vai ser chicoteado. Quer ver?

A lembrança das chicotadas coçou nas suas costas.

- Vamos.

Uma multidão se embrenhava na grande praça. No centro, a mesma mesa de pedra com grilhões. O vizinho, na noite anterior bêbado de felicidade, estava acorrentado e tinha um olhar aterrorizado.

O mesmo homem feio e velho do púlpito falava.

- ...a carne pertencerá à aqueles que servirem como espada, e o pão àqueles que servirem como os músculos que farão Teu reino prosperar. O porco, as cabras e os cachorros servirão de alimento aos soldados. O escravo que lhes tocar, será punido por isso, pois a ele só cabe pão. A carne é punida com carne. Treze chicotadas para aquele que não se contenta com a trouxa de pães, que em sua porta é entregue de bom grado, todas as manhãs, pelo Próprio Deus Vivo, Pessoalmente, através daqueles que lhe servem. Que lhes sivam de exemplo, que este lixo fodido de merda tenha posto as mãos naquilo que não lhe pertence. Que com o couro do chicote aprenda qual é o seu lugar. Aceita o pão mofado e a água suja, que são os que lhe cabem. O Deus Vivo te Observa, lixo cagado. Através de meus olhos, que lhe sirvo Deus.

Um soldado começou a chicotea-lo. O homem urrava de dar pena. Era possível ver linhas abertas e vermelhas nas costas. As chicotadas eram ferozes, e depois da quarta ele já estava completamente desabado. Sangue se espalhava num rastro a dois metros dali. O soldado sorria, o velho lia seu papiro, e a multidão gritava ensandecida pelo espetáculo da punição.

Foi trabalhar em choque, com olheiras fundas da noite mal dormida. Cometeu muitos erros e foi chutado e socado por soldados mais do que de costume.

Voltou para casa e desabou de sono. Não antes de se limpar junto de Marte. Nesta noite, dormiram lado a lado abraçados, e o frio foi menos intenso por isso.








Novamente a rotina lhes tomou. Mas era agora uma rotina mais leve. Pítos e Marte se amavam todas as noites. Ele alisava suas mexas de cabelo e ela lhe sorria e mordia a bochecha. Também ele e Breda eram grandes amigos. Se reuniam com alguns vizinhos volta e meia para beber vinho contrabandeado e fazer planos de fuga que nunca aconteceriam. Contavam fofocas dos soldados e debochavam de Tutancamom e de seus filhos idiotas.

Não é como se fosse livre, mas era feliz.

Até que tudo isso acabou.






Voltava da pedreira de mais um dia de trabalho. Conversava com Bredas sobre um guarda que ao tentar chutar um escravo, caiu do penhasco e quebrou a perna. Riam disso quando chegando perto de casa, viu muitos soldados e vizinhos aglomerados a sua porta.

Marte gritava e chorava enquanto era arrancada de dentro por soldados. Pítos correu até um soldado e  lhe perguntou:

- Que é isso?!

O homem o empurrou para trás e não respondeu. Em algum lugar a voz do velho das punições soava.

- ... Nada sai impune. Este lixo de merda sujou ... filhos do Deus Vivo ... Pagará por isso como deve... Que sirva de lição ... vocês ... A pena da fuga são dezessete ... Aquele que não se contenta com o que lhe é dado... treze... para os que afrontam ... Deus ... Morte.

Os vizinhos gritavam. Os soldados os empurravam e batiam. Pítos levou socos e devolveu. Ele e Breda se embrenharam numa confusão com quatro soldados. Vizinhos apareceram para ajudar e um quebra quebra generalizado se iniciou. Os soldados sacaram espadas e começaram a matar, o que foi suficiente para que fugissem dali. Pítos continuava dando socos quando Breda lhe agarrou pela camisa e o arrastou de lá.

- Você vai morrer, seu idiota.

Foram até a casa de Breda, que tirou um vinho no meio de um monte de panos. Abriu e beberam até ficar completamente bêbados.

Breda dormiu enquanto Pítos ainda acabava com a garrafa e olhava para a porta. Queria fugir. Queria deixar tudo aquilo para trás. Queria ser aquele falcão dourado de novo, e salvar Marte do destino.

Ao lado de Breda havia aquela mesma coisa que vira. Aquilo que a criatura do sonho gesticulava. O homem da barba branca e olhos diamantados. Ele segurava alguma coisa e era aquilo, ao lado de Breda. Um lápis.

Pegou o lápis, largou a garrafa, saiu pela porta e correu.

Correu pelas ruas na direção do deserto. De alguma forma, enquanto falcão, havia visto uma grande árvore. Uma árvore no meio do deserto. Com frutos negros. Ela era tão grande quanto uma tempestade de areia. Iria para lá e sabia para onde ir. Corria como podia. Nos limites da cidade foi avistado por um soldado. Ele o perseguiu mas a determinação era maior que ele. Pítos foi tão rápido quanto pode até que o soldado desistiu. Ele estava indo buscar ajuda e cavalos, sabia. E não teria muito tempo.

O frio do deserto era ainda pior que o da cidade. Mas ele não se importava. A lua deixava a silhueta das dunas exposta. Um mar infinito de estrelas eram um teto abobado sob sua cabeça. E corria. Corria com raiva. Corria com medo. Corria com amor e com ódio. Chorava e vertia um rio de lágrimas. Marte não poderia terminar assim. Morta como uma qualquer. Como todos aqueles quaisquer que morriam na montanha todos os dias. Que morriam esmagados, que caiam de penhascos, que morriam soterrados. Ela não seria mais um morto. Não podia. Não devia. Ela era melhor que todos eles. Melhor que qualquer Deus, que qualquer homem de amarelo ou velho de voz esganiçada. Melhor que qualquer soldado.

A lua ia se pondo. O sol nascia vigoroso e naquele dia, não estava de vermelho escuro, mas num grande vermelho alaranjado.


O calor crescia e tomava seu corpo. Seus lábios rachavam. Suas pernas estavam exaustas. Seus braços estavam exaustos. A areia não tinha fim e começou a duvidar que aquela árvore poderia existir. Duvidar que algum dia chegaria lá.

Percebeu na miragem ao longe os cavaleiros se aproximando. Se enfiou embaixo da areia. Esperou tudo que pode esperar. Estava cozinhando vivo embaixo da areia. Seu cérebro quase começava a ter delírios e alucinações. Depois de muito tempo levantou e os cavaleiros haviam desaparecido.

Continuou caminhando na direção que sentia ser a certa. Primeiro em passos rápidos. Depois cada vez mais lentos, até que no fim quase se arrastava.

O sol fritava sua pele que já tinha bolhas brancas com bordas vermelhas. O suor empapava completamente seu corpo.

Caminhava e via imagens de Breda. Imagens de vinho, porco. Água. Via água. Lagos ao longe. Caminhava na direção deles e desapareciam. Via Marte sorrindo e correndo ao seu lado. Via um falcão dourado navegando os céus. Um homem de capa preta e olhos diamantados que lhe olhavam e sorria.

Via uma árvore. Uma grande árvore.
Uma árvore que quanto mais se aproximava, maior era.

Uma árvore gigantesca, no meio do deserto.
De cascos fortes e que se estendia tão alta quanto a montanha da pedreira.

Não. Era mais alta que a montanha.
Os frutos que de longe pareciam pretos, eram na verdade prateados e lembravam pêssegos.

Caminhou muito até ela. Tinha certeza que era só uma miragem.
Certeza.
Até que a sombra daquela majestosa árvore lhe cobriu a cabeça.

Quando o sol lhe deu trégua, e plantas e árvores e animais começaram a surgir, ladeados naquele oasis no meio do nada, ele finalmente percebeu que aquilo era real.

Havia uma porta azul quebrada, escondida por relvas e plantas. Achou curioso e o quanto ela parecia com a que vira. Mas continuou andando.

Um lago se prostrava ao pé da árvore gigantesca. Bebeu quanta água pôde. Até se fartar. Caiu estatelado de cansaço e sonhou.









Estava novamente emergindo da areia. Do mesmo lugar do começo. Havia areia em seus olhos, nas orelhas e no nariz. Havia areia na boca.

A tempestade era mais forte e uma grande porta vermelha se prostrava alta sob uma duna.

Mas agora não estava fraco nem acorrentado. A areia era ele. A tempestade era ele. Segurou firme o lápis nas mãos e os apontou para cima.

A tempestade girou e girou e se tornou um furacão. Ele era o centro. O olho. Ele e a porta e o lápis. Ao centro do furacão vendo o mundo girar.

De dentro da porta saiu o homem de capa preta.
Barba loura.
E olhos diamantados.
E abriu um largo sorriso.

- Veja só! Essa história tem saído melhor do que eu esperava!

- Porque você fez isso?! Porque você destrói a esperança desse jeito? Você é o diabo!

- Ora ora, jovem Pítos. Eu não fiz nada. Deixei que vocês criassem a narrativa que quiseram criar. Apenas deixei as circunstâncias prostradas de forma que surgisse... uma bela história! Isso! - e gargalhou consigo mesmo.

- Aliás, você agora já não é mais Pítos. Evoluiu a isso. Você merece o amor que descobriu. A amizade que encontrou. A força que teve. Você descobriu seu próprio falcão dourado meu caro, e não fugiu da dor, mas correu em direção a liberdade. E aqui está! Sob a árvore de de frutos prateados.

Pítos olhava pra ele de queixo caído.

- Essa árvore tem uma ótima história, sabe? Todo esse deserto um dia foi um grande oceano. Vou te contar agora a história da árvore dos frutos prateados, caro Pítos. Vou te contar a história de Sárula e o Criador.

E contou.

- "... Muitos dizem, muitos dizem. E espero que continuem dizendo caro Pítos. E Morreram felizes para sempre".

- Isso não faz sentido. Esse deserto não poderia ter sido um grande oceano. O que aconteceu?

- Há muitas histórias entre nós e a história de Sárula meu caro. Mas como Sárula era filha do Vento e do Mar, você meu caro, não é orfão. Você é filho do Deserto e da Tempestade. De certa forma é meio irmão de Sárula, vê? Não poderia haver um furacão nos rodeando, não fosse você filho de quem é.

Pítos olhou para o furacão, e de repente o fucarão acabou. A areia sumiu e só havia deserto, uma porta, e um Criador.

- Mas você é o Criador da história de Sárula?

Ele deu uma grande risada.

- Já passou da hora de você voltar pra casa. Você conheceu a liberdade. Conheceu a dor e o medo. Conheceu a bondade e a tristeza. Conheceu a tranquilidade e o trabalho duro. Acho que estamos destilando finalmente o sentimento que eu quero criar. Estamos chegando lá, meu caro! Estamos chegando lá!

- E agora você já não é Pítos, jovem. Eu te nomeio Pítolos. E quando sua alma evoluir, você saberá qual é seu verdadeiro nome.





Acordou caído no deserto. Completamente sujo de areia. Algo porém jazia nas suas mãos. Havia um fruto prateado e um jarro d'água. Havia também o lápis que roubara de Breda.

Lembrou da história e comeu do fruto.
O fruto ascenderia sua verdadeira paixão. Bebeu da água e soube que aquela era a água do lago sob árvore. O lago. Tudo que restou do oceano.

Revigorado caminhou em direção a cidade.
Entrou sem ser visto e começou a fazer planos.








O Faraó entrou no salão atônito.

- Como assim a água dos poços viraram sangue?

- Sim, meu grande Deus. Suspeitamos que os escravos tenham feito isso. Temos soldados procurando por culpados. A situação é toda estranha, vê? No meio do sangue há flores rosas. São milhares de flores e parece que toda a água virou sangue. Os peixes morreram Vossa Divindade.

-Isso é um absurdo! quero isso resolvido o mais rápido possível!

Uma mulher chorando entrou arrastada por soldados.

-Essa é a serviçal que derramou vinho em Zaket, Vossa Divindade.

- Mande chicotear e prender. 13 chicotadas. Não tenho tempo para lidar com isso agora. Vamos puni-la no futuro quando esse problema da água se acertar.

- Sim, Vossa Divindade.

Saiu do salão de reuniões e caminhou em direção ao seu quarto. "Esses conselheiros são idiotas". Pensou. "Acham que seria capaz de acreditar em qualquer idiotice que falassem".

Chegou até o quarto e sua esposa estava sentada. Escravas lhe abanavam e colocavam frutas na boca.

Estava frustrado. Não tinha poder, ainda que parecesse ter. Os conselheiros controlavam o reino e não lhe diziam nada além do necessário. Aprendera com seu pai que era melhor aceitar. Era melhor ser escravo entre paredes de um palácio que num casebre imundo. Tinha pena dos escravos e tinha pena dos soldados. Mas os conselheiros lhe diziam que não havia pão ou carne para todos. Não havia sequer água, e ao longo do seu reinado ela acabava aos poucos, bem como toda a sua história. "Só podemos construir pirâmides. Elas dão propósito a esse povo para continuar vivendo. Flertamos com a morte construindo nossas tumbas enquanto morremos."

Pegou o vinho e tomou goles grandes. Estava nervoso. Não sobreviveriam a mais uma escassez de água, ainda que não tivessem virado sangue. Era um golpe dos conselheiros para lhe tirar a dinastia. Tinha certeza. Ele iria ser morto e o Juiz Amarelo assumiria o lugar de seu filho como novo Deus Vivo.

Sua esposa tocou sua mão.

- Tudo bem, meu amor?

Sorriu para ela como se não houvesse nada. Ela não precisava se preocupar com nada disso ainda.

- Claro, meu amor. Um pequeno problema com a água mas já está para ser resolvido.

Escravas lhe abanavam e uma trouxe morangos. Bebia vinho e comia morangos até que adormeceu.





Acordou pela manhã e o palácio estava em caos. Pessoas gritavam pelos corredores e soldados corriam em todas as direções. "Que era aquilo?" Pensou "O mundo está acabando?"

A tranquilidade cotidiana desaparecera. Encontrou o Conselheiro Azul no corredor e lhe perguntou que diabos era aquilo.

- Os rebanhos morreram Vossa Divindade.

- Como?! Quantos?!

- Todos. O gado, os porcos, as cabras. Todos. Amanheceram todos mortos. Os soldados estão enfurecidos. Os escravos estão agitados. Há turbas gritando pela cidade exigindo sua porção de água. Há rebelião entre os pequenos oficiais. Já houve muita morte. Há sangue na areia, Vossa Divindade.

Era definitivamente um golpe. Alguém matou todos os animais. Sem água e sem os rebanhos eles iriam morrer todos.

- Mande dobrar o trabalho nas pedreiras. Foque todos na construção da pirâmide. Distribua o dobro de pães. Diga para racionarem a água que tem.

- As devidas providencias já foram tomadas por nós conselheiros, Vossa Divindade. Não precisa se preocupar.

Frustrado deixou o Conselheiro azul e saiu. Foi aos estábulos e mandou arrear seu cavalo. Precisava sair para relaxar.

Montou seu corcel negro e saiu galopando sozinho pelo deserto. Levou um arco para caçar pequenos animais que pudesse encontrar.

Gostava de cavalgar e gostava de caçar. Melhor ainda quando estava sozinho. Geralmente obrigavam-no a sair com alguns soldados, mas caótica como estava a situação ninguém perceberia que ele desapareceu.

Cavalgou por algumas milhas. Desceu do cavalo e localizou patas. Um coiote havia estado ali. Não podia estar longe. Cavalgou mais um pouco e encontrou fezes ainda frescas.

Duas ou três dunas depois encontrou um novo amontoado de fezes e desceu do cavalo.

Espreitou pelo topo da duna e lá, mais abaixo, estava o coiote. Comia um corvo que de alguma forma manejara para matar.

Caminhando lentamente pela lateral da duna procurou uma posição que lhe desse um tiro limpo. No centro do peito e o animal estaria morto antes que pudesse pensar. Nem saberia o que o atingiu. Não precisaria perseguir uma presa meio viva por muitas milhas como já acontecera antes.

Encontrou a posição perfeita. Levantou o grande arco em riste. Olhou o pobre animal se festejando com o pássaro morto. Sorriu.

De repente o coiote virou e olhou na outra direção. E saiu correndo em disparada.

Passou justamente ao seu lado como se mal se importasse com ele.

Raivoso olhou o que o assustou.

Uma tempestade vinha rápida em sua direção. Uma tempestade gigantesca. Mas não era castanha como geralmente as tempestades são. Era um tempestade negra e meio esverdeada.

Um gafanhoto pousou em seu braço onde segurava o arco. Outro pousou na areia alguns metros adiante. E então eram dez. Cem. Milhares de gafanhotos. Vinham num grande enxame destruidor.

Fez tudo que pode pensar. Correu para o pé da duna e se enfiou na areia.

Podia escutar as asas batendo e os insetos atravessando o deserto em direção a cidade. Era uma praga. Eram três pragas. De repente acreditava que a água virou sangue. De repente acreditava que o gado morrera por razão alguma. Ele estava amaldiçoado.

Cozinhava sob as areias, mas mal havia sol. Milhares de insetos cruzavam os céus e o dia se fez noite. Quando clareou, levantou das areias. Seu cavalo estava morto e completamente coberto de gafanhotos. Aliás, haviam gafanhotos por toda parte. Quase mais do que havia deserto.

Caminhou lentamente em direção a cidade, algo que demorou muito mais do que levara para chegar a cavalo. Estava completamente empapado de areia e se sentia como um escravo.



Quando se aproximava das plantações, que ficavam atrás do palácio, ficou em choque. Não havia uma única planta de milho, cevada ou tomilho de pé. Tudo havia sido completamente devorado. Havia escravos agricultores caídos mortos no chão e outros agonizantes. Pessoas corriam por todas as direções tentando salvar espigas infestadas de gafanhotos.


Um soldado veio em sua direção raivoso, com lança em riste, até perceber as vestes nobres e vacilar.

- Err, senhor?

- Como se atreve me chamar de SENHOR?! Você sabe com quem está falando?! Eu sou Tutancamom, o Deus Vivo! Me leve agora para o palácio seu lixo verme! Está me ouvindo?! Você vai ser chicoteado por me chamar de senhor!

O homem baixou os ombros e aceitou o destino. Caminhou com ele até a entrada do palácio. O Faraó deu ordens para que o soldado fosse chicoteado por sua insolência.




Num salão havia vários conselheiros, cada qual com suas vestes coloridas. Passou por eles e decidiu não entrar. Se estava amaldiçoado provavelmente iriam depô-lo. Haveria um golpe. Com toda a certeza. Os conselheiros pareciam apavorados e falavam alto e todos ao mesmo tempo.

Caminhou até a varanda. Mandou uma escrava lhe trazer uma taça de vinho. Bebeu algumas taças e depois se dirigiu a biblioteca.

Procurou nos livros de história sobre algo parecido que tenha acometido seus antepassados. Haviam alguns relatos sobre pestes de sapos e moscas, mas nada que pudesse lhe ajudar.

Passou o dia caminhando de cômodo ao outro sem saber o que fazer. Na cidade, gritos e conflitos aconteciam. Os escravos pareciam enlouquecidos. Alguns soldados se rebelaram e eram fortemente castigados pelas forças leais. espada, lanças e sangue corriam as ruas. Podia ver tudo isso da sacada.

Essa seria uma noite difícil, e dormiu.


Em seu sonho estava numa praia. Havia um grande mar doce e a praia parecia durar para sempre. Uma criatura vestida de capa preta estava parada e olhava para ele com rosto sério.

Se aproximou da criatura. Gritou com ela, deu ordens e exigiu respeito. Mas ela não falava nem dizia nada. Apenas o encarava e o olhava gesticular.

- Na próxima noite, todos os primogênitos morrerão.

Foi tudo que disse a criatura. E então ela desapareceu. O mar ficou revolto, a tempestade engoliu a terra e o Faraó se afogou em sonho.

E acordou.

Levantou. Olhou para a esposa atônito e ainda mais chocado ficou quando viu o mesmo olhar no olhar dela.

-  Você não acredita com o que eu sonhei.

- Você também?

Ela teve o mesmo sonho. Levantou e pelos murmúrios, todos tiveram os mesmos sonhos. Cada soldado, cada conselheiro, cada escravo. Todos sonharam com uma praia, um homem que dizia que todos os primogênitos iriam morrer. Todos os filhos mais velhos.

Era definitivamente uma maldição. Já conseguia ver os conselheiros olhando-o de canto de olho. A cidade, depois de uma noite de gritos e de lutas, estava em completo silêncio. Parecia haver uma grande trégua. Os soldados abandonaram as ruas e as pessoas se trancaram em casa. A montanha estava vazia.

Tutancamom foi até a varanda e ficou ali, vendo a tarde passar, bebendo vinho e esperando que uma próxima garrafa fosse aquela envenenada. Ou que uma faca lhe acertasse as costas. Ou que alguém lhe enforcasse.







Com sol a pino, uma escrava, carregando um bebê, parou aos pés do palácio.

Outros escravos vieram e se juntaram a ela. Olhavam para cima com olhar de ódio. Mais e mais deles saiam das casas e se prostravam ao pé do palácio. Alguns soldados estavam no meio deles. Carregavam espadas sujas de sangue e areia. Olhavam para cima com olhar de ódio.

Soldados leais se prostraram entre o faraó e o povo. Fizeram falanges, seguravam grandes escudos quadrados e espadas e lanças. Os soldados eram bem armados, mas os escravos eram milhares. e cada vez mais deles surgiam das casas e se prostravam ao pé do palácio. Estavam todos em silêncio.

Então a mulher do bebê começou a caminhar. Atrás dela os outros começaram a caminhar. O povo começou a subir o morro. Os soldados levantaram as espadas.

E o silêncio virou sangue, gritos e dor.

Tutancamon entrou no palácio. Sua mulher e seus filhos se juntaram a ele. Os conselheiros estavam arrebanhados em grupos e estavam em silêncio, nervosos.

Ficaram entreolhando-se. Sua esposa apertava as mãos dos filhos, adolescente e criança, que estavam aterrorizados.

Os conselheiros ora falavam alguma coisa ou algum tentava alguma piada, mas sem sucesso. O som da batalha era ensurdecedor. Metal contra metal. Gritos. Choros. A vida e o futuro deles podia estar sendo decidida ali.

Olhando pelos vitrais, ao longe, uma grande tempestade de areia se aproximava. Gigantesca. Atravessou as casas, os escravos e soldados que lutavam. Quebrou as janelas e como que do nada, o Deserto invadiu o palácio.

Todos estavam completamente em choque. Tinham areia nos olhos, no nariz e nos ouvidos. Estavam atolados em areia. E cada vez mais forte era a tempestade, como se fosse ruir o palácio inteiro. A cidade abaixo já quase parecia ter desaparecido.

E então acabou, e um homem entrou a porta e encarou o faraó nos olhos.

- Você deve ser Tutancamon.

O Faraó olhou aquele que o chamava pelo nome, em choque.

- Eu sou Pítolos. Filho do Deserto e filho da Tempestade. E estou aqui para trazer justiça. Onde está a escrava que derramou vinho em seu filho e o filho dela?

O faraó olhou para um conselheiro laranja que sem demora saiu correndo pelos saguões.

- Você faz esse povo sofrer e lutar entre si. Você é a causa de dor à muitas pessoas. Eu sou a espada que bate em sua porta e ela treme. Eu sou sua praga, Tutancamon.

O faraó engoliu seco.

- Eu disse que todos os primogênitos morreriam hoje. Não matarei todos os primogênitos.

Agarrou Zaket, o filho mais velho de 14 anos, nos braços, e sacou uma faca.

- Só matarei o seu. - E cortou a garganta do garoto, que jorrou um rio de sangue.

Do sangue derramado, rosas começaram a nascer e crescer. Rosas grandes e de botões largos.

A esposa do Faraó correu gritando enlouquecida até o filho, no que foi recebida com um punhal na barriga. Foi esfaqueada, e esfaqueada, e esfaqueada várias vezes. Do sangue dela que escorria pelo saguão, também grandes Rosas nasciam e se enroscavam. Rosas realmente grandes.

- Eu sou Pítolos, Tutancamon. E sou sua praga. Todo o mal que você causou é causado contra você. Todas as famílias que você destruiu e agora verá sua família ser destruída. Toda dor, agora é sua. A morte é punição pouca para você.

- Pegue suas coisas. Você está banido deste lugar. Vá para os desertos e morra por lá.

O faraó, de joelhos, olhava para a esposa e o filho mortos. Do corpo dos dois raízes verdes claríssimas emergiam com botões de rosas gigantes. Não paravam de crescer mais flores. Seu filho mais novo, Kamef, ao seu lado estava paralisado de choque.

O Faraó levantou e saiu.










Os conselheiros caíram de joelhos e baixaram a cabeça ao chão. Pítolos largou o punhal e caminhou para a porta. A tempestade se fez num furacão que circulava sob o palácio. As areias do deserto voavam fortes mas não o atingia.

Na planície abaixo, os escravos e os soldados olhavam para ele, atônitos.

- Ele matou o Deus Vivo!
Alguém gritou.
- Não! Ele o exilou no deserto!
-Ele é o verdadeiro Deus Vivo!

Murmúrios se perguntavam quem era ele. Pítolos olhou para o céu, fechou os olhos, e escutou finalmente as palavras de seu nome.

Ptolomeu.

Levantou os braços com o divino conhecimento de seu verdadeiro nome. Marte entrou no salão com seu filho. Estava chicoteada e suas costas sangravam. Ela chorava. Ficou em choque quando viu o filho e a esposa do faraó estendidos no chão.

Ptolomeu foi até ela com um sorriso.

- Eu falei que viria te salvar!

- Você matou essas pessoas? - Ela estava incrédula.

- Eu tive que mata-los. Eu salvei a todos.

- Você não salvou a todos, Pítos! Você destruiu esse lugar! Como as pessoas viverão sem pão, sem carne e sem água? Elas vão todas morrer!

O rosto dele fechou.

- Meu nome agora é Ptolomeu.

O filho mais novo do faraó, de sete anos, correu contra ele com o punhal que largara no chão. O garoto enfiou o punhal em sua perna que comeu carne e cravou até no osso.

Ptolomeu gritou. Olhou para o garoto enfurecido. Arrancou o punhal da perna e esfaqueou a criança.

Terminou completamente sujo de sangue. Do corpo do garoto, um jardim de rosas vermelhas emergiu do sangue. Rosas de botões grandes.
Por toda a cidade, por todo o sangue, as rosas cresciam.

Marte olhava para Ptolomeu, completamente ensanguentado, com medo.

- Esse não é você.

- Esse é meu verdadeiro eu.

- Então não quero estar com você. Você não é assim.

- Eu sou assim.

Ela pegou o filho e correu.

O ódio, a raiva e a frustração tomaram conta do seu ser. O que fez de errado? Ele havia se vingado. Ele havia feito o que deveria fazer. Porque ela não queria estar com ele? O que aconteceu?

Então ouviu aplausos.

Olhou para ver o que era aquilo.

Detrás de uma coluna surgiu Breda. Ele dava gargalhadas largas e olhava para aquele ser ensopado de sangue, com um punhal na mão, e que sob os pés jaziam duas crianças e uma mulher mortas num jardim de flores.

- Meus parabéns, Ptolomeu! Você destilou exatamente a emoção que eu buscava.

- Breda?

Ele deu um sorriso. Os olhos de Breda, antes verdes, agora eram cristalizados. Sua barba curta preta crescia e ficava loura. Ele vestia uma capa marrom escura, que olhando melhor agora eram dum preto nobre.

- Claro, meu amigo. Claro. Sabe, alguns criadores criam mundos e universos. Outros criam raças, fortalezas em montanhas. Me interessam porém precisamente as emoções e as sensações mais sublimes e mais complexas da encruzilhada de portas. Você, Ptolomeu! Você. Dos escorpiões de um deserto por detrás de uma porta vermelha. Uma porta vermelha de onde se espera flores e sangue. Você acaba de criar a mais sublime das emoções. A vingança.

- Veja, você não tinha nada. Descobriu a liberdade, o medo e a dor. Descobriu o amor e perdeu o amor. E para conquistá-lo destruiu tudo! Essas pessoas te louvam como Deus quando na realidade você não é Deus nenhum. Você é só um pobre diabo que frustrado, criou justamente aquilo que vim buscar.

- Breda, como você pode?

- Não estamos completos meu amigo. Não ainda.

O criador sacou da capa um lápis. Gesticulou e logo Marte e seu filho surgiram novamente na sala. Apontou o lápis para Ptolomeu e ele estava completamente paralisado, sem conseguir se mexer. O Criador sorriu.

-Você ainda não bebeu completamente do cálice que tenho para você.

Sacou um punhal e rasgou a garganta do filho de Marte. A mulher gritou enlouquecida, seus olhos jabuticaba ficaram vermelhos e seus longos cabelos cacheados ficaram ensanguentados enquanto abraçava o filho morto aos seus pés.

O Criador olhou para Ptolomeu. O olhar de ódio. De raiva. De vingança em seu semblante. A  ira que lhe fermentava a alma e a sensação completamente paralisada de não fazer nada.

Então jogou Marte no chão e a esfaqueou. Muitas vezes. A faca cortava-lhe a barriga e as tripas e os órgãos eram dilacerados pelo punhal. Ela gritava e chorava. Chorava pelo filho. Pelo Pítos que amou. Por todos os amigos que conheceu e teve. Chorava enquanto era esfaqueada. Suas lágrimas de sal escorriam pelo rosto e misturavam-se com sangue, de onde brotavam grandes rosas vermelhas.

Ela e seu filho se tornaram um jardim. Um grande jardim rosado de areia, aos pés do Criador.

Criador este que não parecia ter uma gota de sangue sequer nas mãos. Se levantou. Olhou para Ptolomeu e sorriu.

- Veja agora ser feito a você o que você fez com os outros!

E o ódio enfurecido, destilado, arraigado, entranhado saiu do âmago do seu ser como um vulcão que entra em erupção. Seus braços viraram asas douradas que se transformavam num grande falcão. Mas o dourado se fez em vermelho e as penas em escamas. Um grande dragão crescia à frente do Criador. irado e raivoso. Lá fora um furacão gigantesco arrancou o palácio inteiro do lugar, destruiu as esfinges e as pirâmides. Matou todas as pessoas que um dia viveram naquele lugar. Tudo que um dia houve era Deserto e Tempestade. O dragão urrou algo que pode ser ouvido além do deserto. O dragão que era falcão que era Pitolomeu que é a vingança. A pura e mais sublime vingança.

E se libertou das amarras e devorou o Criador.








Há num deserto um jardim de flores rosas.
Dizem que são os maiores botões que já se viu.
Eles bebem de sangue e não da água.

Sob esse jardim há um dragão. Ele está adormecido.
Este dragão tinha um nome, e agora já não o tem.
Dizem que acorda em cada ser do universo,
quando lhe chamam.
Este dragão é a vingança.

Muitos dizem, muitos dizem.

E que continuem dizendo.

E morreram felizes para sempre.











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