Hospício

Por Antonio Fernandes

Nada
Sou nada
Nem resto sobrou
Não sobrou pedaço
Cortei com aço
De Serra
Sangrou
Fiz desenhos rabiscos extensos
Rasguei da minha carne
Arranquei
Tirei fora
Cada pedaço obssessivo
E errado
Que fui
E perdido nisso
Arranquei inteiro
E me fui
Não sou mais
Pode esquecer
Deixei de ser
O que você pensou que era
Acabou
Já não há
Não há o que falar
Nem dizer nem pensar
Não quero saber
Quer saber?
Já não me importo mais
Tiver que vir venha
Não tiver
Não faço mais questão
De dor
Já não me atormento mais
A dor do corpo
Por sangue que haja
Por fôlego que perca
No grito do berro
Por neurótica compulsiva
Trêmula
Que seja
Nem se compara
A dor das lembranças
E dos pensamentos que tive
Te chocam meus cortes por fora?
Me chocam meus cortes por dentro
Pensar sangra mais
Que essa faca no meu pulso
E foi tanta
Tanto sangue tanta dor
Tanta lembrança torta
Tanta mentira mal contada
Tanta decepção de tanta gente
Com quem eu me importava tanto
E me inspirava tanto
E botava tanta fé
Quantos quadros retratos
Partidos jogados no chão
Coisas rasgadas
Pisoteadas jogadas
Largadas abandonadas
Tantas
Ufa
Foi tanta dor meu bem
Que quer saber
Nenhuma dor
Me impressiona mais
Porque de tudo isso
Trancado na masmorra
Dos doentes
Eu vivi ao lado
De dores
Tão inexoravelmente
Indubitavelmente
Maiores
Mais pesadas
E mais sufocantes
Que as minhas
Dores que deixavam cicatrizes
Na carne
Que pareciam que meus
Rabiscos
Eram de colorir
Vi gente enfeitiçada
Gente amaldiçoada
Gente partida e derrotada
Eles sorriram pra mim
Fizemos piada
E jogamos cartas
Sob a mesa gradeada
E de tanto paus e tanto copas
Tanto ouros e espadas
Misturado nas perfeitas 52 cartas
Nós que somos 53
Loucos tolos que gargalhem
Rasgamos nossas bocas
Com faca e navalha
Do gargalhar
Somos a gangue
Do cabelo verde
Pintamos o rosto
Te encaramos com gosto
E meu irmão
Do meu olhar tenebroso
Você vai afinar
Eu sou a própria loucura
E você vê tanta loucura em mim
Que fica com medo da que
Existe em você
Eu vivi essa minha dor
Eu convivi com essa dor
Dos outros
E pelo vale de sombras atravessei
E renasci convicto
De que vou fazer por mim mesmo
O que eu tiver que fazer
Que o faça!
Se tiver que inspirar,
Que inspire
Um cara inteligente
Uns anos atrás
Mandou uma palavra séria
Amai-vos uns aos outros
Como ama a si
Mesmo
E em mim
O si mesmo faltou
Fiz por você
Nas por mim já não fiz
Pisamos os dois no prego
E o prego nos seus pés
Tratei cuidei
Passei remédios, coloquei
Bandaid
Conferi dia após dia
Se melhorava
Enquanto isso meu pé sangrou inflamou
Infeccionou gangrenou
Se tornou câncer que se espalhou em veias pretas
Pelos meus pés pela minha perna
Peito, pescoço
Veias negras de câncer do ódio
Pelo corpo todo
Pois odiei a mim
Como tenho odiado tudo
Enquanto vasta esperança coloquei em apenas
Fazer, por você
E agora aqui
Nunca fiz nada por mim
Então me amar
Te digo
É meu novo exercício
Essa aventura doeu
Doeu estupidamente
Teve momentos que
Eu devo dizer
Eu cheguei muito perto
Do fracasso
É bom ter o corpo livre outra vez
Comer com garfo e faca e dormir a hora que quero
Mas a mente realmente livre

Será que será um dia?


Comentários

  1. Livre do apego. Quando se permite que tudo se vá. O amor permanece.

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  2. Por todos os momentos de sua história concretamente vivida, dai graças, meu caro.
    Pelas cicatrizes, rasas ou profundas, dai graças.
    Pelos presentes, mas também pelos que, ausentes, te levaram a rabiscar na carne e a escrever no coração, dai graças.
    Por lhe ter sido dado conhecer as dores pesadas e sufocantes de irmãos a seu lado,, e por que também elas são cicatrizes que carregas hoje contigo, dai graças.
    Pela simples possibilidade do perdão, primeiro aos que te cortaram antes que se propusesse a rabiscar sobre a sua história, depois a você mesmo, espero que dês graças.

    Com sua história concreta, com as cicatrizes e com o perdão, que desejes caminhar por campinas verdejantes no dia que foi feito para ti: HOJE.
    E que tenhas sempre uma palavra para não temer os vales mais tenebrosos.

    Pelas palavras que ecoam em você daquele que, mais do que inteligente, é a própria Palavra, o Verbo se fez carne e se deixou cortar, Ele que é loucura para os gregos, de ontem e de hoje, dou graças.

    O Verbo, a Palavra, o Logos feito carne, que se deixou cortar, pode ser a loucura a que se referiu Pessoa:

    “Louco, sim, louco, porque quis grandeza
    qual a Sorte não dá.
    Não coube em mim minha certeza;
    por isso onde o areal está
    ficou meu ser que houve, não o que há.

    Minha loucura, outros que me a tomem
    com o que nela ia.
    Sem a loucura que é o homem
    mais que a besta sadia,
    cadáver adiado que procria.”

    Dou graças por você.



    Um beijo no coração, meu caro.

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