Reflexões de um Fantasma

Por Antonio Fernandes

Já parou para observar a beleza de um sorriso? É uma simples contração de músculos na área facial que remete a um semblante feliz. Algumas vezes é um grande sorriso, que mostra todos os dentes, que, hora são bem ajeitados, hora são tortos e desalinhados, mas independentemente do conteúdo de beleza da boca, sorrisos serão, eternamente, sorrisos.
Em outros casos são sorrisos contidos, de alguém que segura para não sorrir, mas o deseja. Em outros, é um riso extasiado, de alguém que acaba de ouvir uma piada e desata a rir. Existem sorrisos simples e belos, de uma criança que ganha um doce, um olhar apaixonado de namorados, ou até uma velhinha que acaba de terminar mais uma das suas peças de tricô.
Há sorrisos de vitória, de um jovem que acaba de olhar seus resultados e descobrir que passou na faculdade, ou  um homem que escalou até o ponto mais alto do planeta, e ao chegar lá e olhar ao seu redor, descobre o planeta inteiro aos seus pés.
Há sorrisos orgulhosos, de um pai que vê seu filho erguer um diploma universitário e jogar o chapel de sua beca nas alturas. Ou, de uma mãe que, suja de suor e dor, olha pela primeira vez nos olhos de seu próprio e amado filho.
Sorrisos são algo comum, que vemos diariamente no nosso cotidiano. Alguns dizem que antigamente as pessoas sorriam mais, o que não é verdade. Mas, a medida que crescemos, deixamos de observar e ficar felizes com a felicidade dos outros. Enterramos nosso lado criança, que antes, observava somente as alegrias do mundo, e passamos, cada vez mais, a observar apenas as lágrimas e dor, o mundo vai perdendo suas cores, e as crianças que antes existiam em nós, cada vez mais, se tornam uma sombra.
As pessoas deixam de ver a beleza contida nos simples sorrisos, param de sorrir para si mesmos no espelho, elas simplesmente não se importam.
Os semblantes felizes se tornam comuns, e nós deixamos de dar a devida atenção a eles,  nós vamos ficando velhos e duros, vamos deixando nossos semblantes cada vez mais fechado para a vida. Nós damos atenção demais as lágrimas. Damos atenção demais a dor. Damos atenção demais aos problemas, e passamos a ignorar ou tratar com desdém os motivos simples que poderiam nos levar a ser mais felizes, e simplesmente... sorrir.

Olhando daqui, do alto desta ponte, vejo agora o quão ninguém eu sou. O ninguém que me tornei. Tive centenas de oportunidades para sorrir, e em todas elas eu me fechei e tentei abafar meus risos, agora, já é tarde demais.
As cicatrizes em meu rosto remontam minha tragédia, eu que tinha tudo e agora não tenho nada. Lembro-me daquela estrada, e ao meu lado, o maior amor da minha vida estava lá, ainda comigo, ainda minha.
Ela não era uma mulher perfeita, não era uma dessas mulheres que se vê nos filmes, loira de olhos claros e pele lisa de perfeição. Não. Mas era para mim a coisa mais linda que existia, pois era a mulher que eu amava, minha esposa. Mesmo que ela já tivesses lá seus 40 anos, para mim ela ainda era aquela menina que eu conheci nos corredores da faculdade, 20 anos antes. Aqueles olhos negros que me fisgaram desde o primeiro dia de aula, e que eu olhei milhares de vezes pela minha vida, sem que me desse conta, centenas de vezes, o quão importante aqueles olhos eram para mim.
E atrás, no carro, estavam meus dois pequenos tesouros mais preciosos. Meus filhos, dois garotinhos, um de 4 e outro de 7 anos. Incansáveis mulequinhos, que destroíam tudo, devam um tremendo trabalho, mas ainda assim, toda vez que eu olhava nos olhos deles, encontrava ali um pedaço de mim.
Aquela viagem tinha tudo para ser perfeita. Era nossa viagem de férias, a qual deveriamos nos divertir e aproveitar ao máximo em família, mas como sempre, nós adultos esquecemos a felicidade das pequenas coisas, e insistimos em buscar o problema e o erro em tudo que encontramos. Somos perfeccionistas demais, protetores demais, corretos demais, e esquecemos que a perfeição dos seres humanos, está, exatamente, na sua imperfeição.
Os dois garotos começaram a discutir por um motivo qualquer que não me recordo agora, e começaram a brigar. Minha mulher foi tentar intervir de modo pacífico, mas o mais velho bateu no mais novo e ele começou a chorar. Eu, com a cabeça cheia de problemas, contas e trabalho, revoltei mais do que deveria, falei grosso com o pequeno, e virei-me para dar uma lição nele.

Talvez eu tenha me comportado mau naquele dia. Nós pais, quando vemos pela primeira vez nossos filhos da maternidade, temos para nós, desde aquele momento, que temos que ser perfeitos, e criar um filho perfeito, mas talvez aí que esteja nosso erro.
Nós somos seres humanos, e nunca, jamais seremos perfeitos, mas mesmo assim tentamos passar aos nossos filhos a idéia de que nós, pais, estamos acima de tudo e de todos, que somos deuses em forma humana, colocados ali para educa-los e corrigi-los sempre. Esquecemos então que, mais que pais, nós somos seres humanos, e que errar, é humano.

Aquele, eu tenho para mim agora, como o maior erro da minha vida.

Quando me virei para agredir meu filho, desviei levemente o volante, jogando o carro para a pista contrária, e do outro lado, virando uma curva a toda velocidade, vinha um caminhão.
O carro foi jogado de um penhasco, e aqueles segundos que passamos em plena queda foram os piores momentos que alguém poderia querer para si.
Eu via todos os objetos perdidos como que flutuando a minha volta. Moedas, canetas, blocos e tudo mais. Minha mulher gritava a plenos pulmões fazendo mais barulho que o carro enquanto esse rolava e caía cada vez mais, e eu pensei por alguns segundos que ela ia estourar os meus tímpanos.
Eu, devo dizer que solto um pequeno sorriso sarcástico de dor nesse momento, eu estava pensando nos danos materiais do carro, e dos problemas que a porcaria do seguro ia me trazer para bancar aquilo.
E os garotos, há... os garotos. Eles, como todo garoto, estavam sem cinto. Eles flutuavam e batiam de um lugar ao outro como duas marionetes. Pelo retrovisor, eu pude ver quando o pescoço do mais novo estalou e sua cabeça girou numa posição horrenda e indescritível para trás, o outro tinha o braço numa posição estranha , e gritava de dor de modo cada vez mais fraco, até que o carro chegou ao fim da queda, e ficou caido de cabeça pra baixo. Entramos num silêncio fantasmagórico.

Empurrei o chão para tirar o peso de cima do sinto de segurança e o arranquei. Cai de cabeça pra baixo e senti alguma coisa molhada na minha cabeça, e descobri que jorrava sangue de algum lugar em mim.
Pela simples loucura do momento, eu não senti absolutamente nada, apesar de depois o cirurgião ter me dito que o retrovisor abrira uma fenda de 3 centimetros na minha cabeça, e que se eu tivesse sido socorrido 15 minutos depois, teria morrido simplesmente por perda de sangue.
Me arrastei para fora do carro, e no momento mais desesperador da minha vida, eu coloquei para mim que simplesmente não podia deixar minha familia ali presa embaixo daquele maldito carro, enfiei minha cabeça olhando novamente a situação; E entrei em pânico.
O mais novo estava com toda a certeza, morto. Meu pequeno homenzinho, que eu havia posto nos meus ombros e pulado de cavalinho enquanto ele ria enlouquecidamente, estava tão esmagado e destroçado que eu não vou jogar palavras ao vento para descrever aquele horror ali prostrado na minha frente. O outro, também sem vida, estava meio enfiado no porta-malas, no meio das bagagens, e só de olhar pra ele, vi que o havia perdido também.
Minha mulher respirava ofegante e chorava. O porta-luvas havia se soltado, e se enfiara de um modo estranho dentro da barriga dela, e parecia que ela tentava respirar mas simplesmente não conseguia. Eu me arrastei loucamente até o lado dela do carro, passei longos minutos tentando arrancar a porcaria do sinto de segurança, até que, enfurecido, enfiei a cabeça lá, e com a simples  força de um pai, marido e homem desesperado, arranquei o sinto com meus próprios dentes, e puxei ela para fora daquele inferno.
Quando eu coloquei a cabeça dela no meu colo, vi que já a havia perdido também. Ela chorou lágrimas que me trazem mais lágrimas aos olhos só de lembrar. Da boca dela sangue brotava, vindo de algum lugar do fundo da garganta, mas de algum jeito consegui ouvir ela dizer um último "eu te amo".
Olhei no fundo dos olhos dela, e beijei minha esposa pela última vez na minha vida, e talvez tenha sido naquele momento que descobri o quão desimportante eu era. O quão nada nem ninguém eu sempre fui, e como eu havia jogado toda uma vida fora, sem aproveitar como deveria cada um de seus momentos.

Estou sentado agora no alto dessa ponte. Olhando para talvez 60 metros de altura. 60 metros que me separam do mar, 60 metros que me separam da vida e da morte. 60 malditos metros que me separam da minha família.

E eu estou aqui, pensando e meditando sobre sorrisos.

Tão ingênuo. Tão humano.

Qual o sentido disso tudo? eu vivi em função de construir uma família por toda a minha vida, apenas para a ver destroçada depois de alguns poucos segundos? Um erro tão pequeno, que custou a vida das três pessoas  que eu mais amava e tinha por consideração nesse maldito planeta. Onde está a justiça nisso tudo? Onde está Deus? Onde estão aqueles heróis dos filmes, que salvavam as pessoas indefesas naquelas histórias? Onde estão todos?

Sentado aqui, no topo do mundo, me vejo... Sozinho.

Encaro uma paisagem perfeita, e agora, posso dar valor a ela. Vejo o sol, num vermelho vivo, perdendo suas forças num lugar distante, além do horizonte, se pondo. Lá onde o mar está agora a se encontrar com o céu e onde os deuses olham para os homens e riem. De um lado, uma montanha se encontra com o mar, e daqui posso ver as ondas batendo nas pedras. Do meio da imensidão de árvores, algumas gaivotas levantaram vôo e seguiram em direção ao horizonte. Lá onde os deuses nos olham, lá onde o Sol morre, para o lugar do qual eu pretendo ir.

Atrás de mim, o mesmo barulho que cansei de ouvir em todos os dias de minha vida. Carros e seus motores, andando de um lado para o outro. Adultos que se acham perfeitos, fechados em seus mundos de problemas, andando de um lado para o outro. Ônibus lotados com pessoas que já se cansaram a muito daquela vida, e mesmo assim insistem em subir neles todos os dias, e suportar mais uma vez aquela lotação. Todos grandes demais para si mesmos. E ao mesmo tempo, todos pequenos demais para o poder do mundo, para o poder do destino. Idiotas.

Minha vida, que eu considerava tão importante e intangível, não vale, para mim nem pra ninguém, nada mais. Levanto-me do lugar onde estou sentado, fico de pé e observo as gaivotas, lá longe, batendo suas asas rumo ao desconhecido. É apenas um passo que me separa desse mundo de robôs inertes para um desconhecido profundo. Não sei o que irei encontrar, não sei se existe um Deus ou deuses, se existe vida ou simplesmente nada após a morte. Mas seja lá onde for esse nada, é lá que as pessoas que eu mais amo no mundo estão, e é lá que eu pretendo estar.

Uma última fagulha de esperança nas portas de um mar de escuridão.

Penso uma última vez nos olhos de minha esposa olhando para os meus. Lembro do meu pequeno garoto jogando tomates na parede, e do mais velho vindo correndo com uma espada de brinquedo na mão, me tendo por seu grande inimigo, e tentando me matar, lembro do dia que levei o mais velho pela primeira vez na escola, e que ele chorou inconsolavelmente para que eu não fosse embora, e tocado pelas lágrimas do pequeno homenzinho, matei um dia de trabalho e passei a tarde toda com ele e seus novos coleguinhas, brincando de bonequinhos e pega pega com os garotinhos, eu de terno e gravata, essa fantasia que me faz parecer mais homem do que descubro ser agora. Lembro-me do meu filho dormindo na "hora da soneca", com seus suspiros profundos de uma criança que dorme e sonha com maravilhas, sonha com um futuro, sonha com um mundo melhor. E que agora, já não sonha mais.

Um sorriso se abre em meu rosto, um último sorriso, e uma lágrima escorre pela minha face, uma última lágrima, e corajoso, dou um último passo. Sinto-o não encontrar nenhum apoio, e simplesmente desabo numa imensidão azul, de olhos fechados, seguindo nenhum destino, nenhum Deus nem nenhum homem, sigo apenas o que meu coração me manda seguir, um amor de pai.

Desabo na imensidão do tempo e do espaço, para nunca mais voltar...

Aguardem meninos, papai está chegando.

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Isso realmente acontece.

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"Olhe o que eu trouxe para sua chegada papai."
 

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