Flores Negras

Por Antonio Fernandes

Era um ambiente carregado de lágrimas e de tristezas, onde a mais colorida das flores iria parecer cinza e sem graça. Pessoas de cabeças baixas sussurravam umas com as outras, num canto, uma mulher de meia idade chorava. Um padre falava palavras que chamavam a atenção de uns poucos, e volta e meia uma criança, distanciada daquele momento pela sua inocência juvenil, passava correndo em risos por uma brincadeira qualquer.
Eu sabia de tudo aquilo que se passava a minha volta, mas minha atenção era limitada à um mínimo. Em minhas mãos, uma rosa negra, que eu observava avidamente, enquanto meditava sobre aquela cena triste e carregada.

Muito tempo atrás, quando eu tinha por volta de meus quatorze ou quinze verões, eu e alguns amigos, numa noite louca da juventude, havíamos jurado que seriamos grandes companheiros por toda uma vida, e sempre que um de nós morresse, os outros levariam, cada um, uma rosa negra ao seu velório, que lembraria o morto, que esperasse o restante de nós do outro lado.

Nós vivíamos tempos alegres naqueles bons anos. Sabíamos cada notícia, cada resultado, cada centímetro de tudo que acontecia no grandioso mundo do futebol. Não perdíamos sequer uma chance de ir ao estádio e torcer pelo nosso glorioso time. Vestíamos a camisa com orgulho, chorávamos e gritávamos a vitória todos juntos, a cada vez que os guerreiros de nossa orgulhosa seleção pisavam os gramados. Lutávamos com unhas e dentes para proteger, o time pelo qual eramos apaixonados.

Talvez lutássemos até demais. Andávamos em grandes grupos, tínhamos força, e alguns até mesmo estavam armados. Empunhamos poder em todos os lugares que passávamos, cantando todos juntos em coro, estremecendo o chão por onde quer que andássemos. Éramos os reis das ruas.

Naquela época, em meus quatorze ou quinze verões, meu time chegou as finais da copa do Brasil. Eu e meus outros 7 grandes companheiros, unidos desde a infância, roubamos uma loja de conveniências para conseguir o dinheiro dos ingressos. Como sempre tudo correu bem, nada dava errado em nossa época de ouro.

Compramos os ingressos, nos juntamos a massa da torcida e fomos todos para o estádio. A partida começou acirrada, tomamos um gol logo de cara, nos 15 do primeiro tempo. Um de meus amigos chorou feito um bebê em meus ombros, enquanto eu olhava desolado meu time perder o jogo da década.

O restante do primeiro tempo, como sempre no futebol, foi uma palhaçada. Jogadores expulsos, juiz ladrão, técnico dando pitti. Nós, da torcida, calados, esperando ansiosos e ilusórios, ouvindo os berros da torcida adversária, e os odiando cada vez mais.

Até que, aos 8 do primeiro tempo, numa cobrança de escanteio, um jogador, do qual não me recordo mais o nome, subiu pouco mais, e colocou a bola na rede com um lindo toque de cabeça. Dava para sentir uma onda de gritos, uma loucura estática, de quarenta mil pessoas que saltam juntas enquanto soltam a voz num grito, que vem sendo arrastado dos tímpanos e fazendo o peito explodir a plenos pulmões. Um grito de quarenta mil que soa como um só. Afinal, ainda havia esperança.

E eis que ela veio, antes tarde do que nunca, 30 minutos depois, nos meados de fim de partida, a zaga rouba a bola, e num contra ataque exímio e perfeito, nosso time se lança para o gol, e em toques exemplares e orgulhosos, nossos jogadores tiram o goleiro da jogada e enfiam a bola nas redes.

Outra vez a torcida foi a loucura. E o grande bandeirão de nossa organizada desceu, exibindo poderoso o brasão de nosso time, aquilo que nos dava tanto poder, e nos deixava tão orgulhosos.

E por fim veio o apito final. No meio de choros e lágrimas, me abracei com meus amigos de armas, e gritamos, e cantamos, e festejamos aos sons da arquibancada, junto de nossos outros quarenta mil irmãos. Assistimos a entrega da taça, vimos nosso time brilhar como nunca havia brilhado.

A magia do futebol.

Saímos do estádio, nos envolvemos em duas ou três brigas com a torcida adversária. Não nos machucamos. Éramos invencíveis naquele tempo. Fomos para um bar, pedimos várias cervejas, e mesmo sendo de menores fomos atendidos. Talvez porque o dono do bar não se importasse com a lei, talvez por medo do brasão em nossos uniformes, que espalhava tanto medo entre as gentes comuns. Não importa, bebemos até a quase inconsciência. Foi naquela noite que cortamos nossos dedos com um canivete, e fizemos um pacto de sangue. Uma morte, 7 rosas negras.

E a glória da juventude passou.


-


Estou aqui sentado, encarando uma rosa negra que não me deixa esquecer nada menos que dez anos de glória, luta e sofrimento. Dos meus 12 anos, quando comecei a andar com as organizadas, até agora, toda uma história de sangue e poder.

E o que eu nunca imaginei, começa a acontecer. Eu sempre dei tudo de mim à torcida. Minha vida sempre girou em torno do meu uniforme. Sempre girou em torno das amizades e das lutas. E essas lutas pareciam tão... simples.

Quer dizer, viamos notícias de outras pessoas que haviam morrido por conta delas, haviamos até mesmo matado algumas, mas nunca imaginávamos que pudesse acontecer conosco. Éramos reis! Éramos Deuses dentro daqueles uniformes! Não era certo olhar para aquele caixão, a minha frente, e ver um amigo com que chorei, sangrei e sorri, deitado sem vida, sem energia ou felicidade.

Essa era na verdade, a terceira rosa negra da qual eu tinha que colocar sobre um caixão. Nós, que fomos os 7 invencíveis, restávamos apenas... quatro. Nada daquilo era certo.

-

As dúvidas começavam a vir me assolar. Que farei eu do meu futuro? Era claro agora para mim, que se continuasse naquela vida, terminaria como meus amigos. Deitado com rosas no peito. Por outro lado, eu nunca havia feito nada de diferente. Quando precisava de dinheiro, roubava. Se me ameaçassem, resolvia o problema com armas. Eu sempre fui forte, mas agora começo a ver que minha força de jovem não irá durar para sempre.

O que farei com o que resta de mim? Minhas cicatrizes provam agora que não sou o deus que pensei ser. Não sou menos homem que todos os meus inimigos que soquei, esfaqueei ou atirei. Na verdade, todas as vidas que tirei, agora começam a vir me atormentar. Eu que era frio e levava um peso de mortes tranquilo, agora começo a me arrepender, e descobrir o quanto pesa cada vida, cada ser humano.

É o maldito tempo me tornando fraco.

-

Me levanto e caminho em passos trêmulos até meu grande e antigo amigo. Em cada passo, um flash me assola, me lembrando de uma garrafa de cerveja, uma boa briga, ou uma noite em que juntos, traçamos centenas de mulheres. Lembro de sorrisos, apertos de mão, abraços e gritos. Lembro das vezes em que tive que leva-lo com ferimentos graves ao hospital, e das vezes que ele e os outros tiveram que me levar. As lembranças me rodeiam. Me atacam. Como lobos, cada uma delas se aproxima e tira um pedaço de mim, um pedaço da minha alma.

Por fim chego, e encaro aqueles olhos, que já não me encaram mais.

Ele parece dormir sereno, como se a qualquer momento fosse levantar, cheio de vida, e me chamar para uma nova briga. Contudo, seu rosto pálido trai o que ele realmente é: Carne e ossos, e nada mais.

Sinto como se me arrancassem do meu trono, me jogassem no chão e me apedrejassem. Não que as pedras fossem doer. Já levei tantas pedradas que à elas não dou mais atenção que aos mosquitos. Mas a humilhação de olhar o trono de poder, onde sentávamos os 7, e saber que aquilo não passou de um sonho, muitos anos distante dali, me envolvia num estado de desespero.

Chorei, chorei por não saber o que fazer com meu futuro, chorei por perder um amigo e companheiro de uma vida inteira, chorei por sentir medo de como seria não ser mais um rei. Chorei porque descobri, enfim, que apenas o que sou, é ser humano.

Juntei minha rosa negra as outras três que já estavam ali. Outro de meus amigos colocou a mão em meus ombros, um segundo apertou firme meu punho. Me tiraram tranqüilamente daquele ambiente pesado, pois como um deles disse, eu devia me preparar.

Pois no dia seguinte, nosso time iria à campo, e eu seria novamente, um Rei das Ruas.

Até que o tempo me leve também...


Que soem as gargantas, a guerra irá continuar.



Comentários

Postagens mais visitadas