Valhala

Por Antonio Fernandes

Então tudo ficou branco, e a dor, que comia minhas entranhas e martelava minha alma, aos poucos, diminuiu, até sumir. Tudo a minha volta parecia flutuar, e me vi rodeado de nuvens, e quando as nuvens se dissiparam, me deparei num vale verde.
Era um lindo vale, com pequenas colinas e árvores aqui e acolá. Alguns pássaros viajavam aqui e ali, um deles piou em algum lugar.
Fazia frio.
Não muito, claro, é aquele frio bom que se sente quando um sopro de vento te pega num belo dia de sol e te faz arrepiar. Eu estava confuso, claro. Parecia estranho estar transportado ali daquela maneira, apesar de eu já saber que aconteceria.
Eu ainda estava vestido como antes. Usava minhas botas presas as minhas grevas nos calcanhares, que subiam até meu saiote feito de tiras de ferro na horizontal. Meu peitoral lustroso arranhava e ocultava a cota de malha presente em baixo, e meus braços desnudos seguravam meu poderoso escudo, e o outro minha espada, mas havia uma coisa estranha.
Eu estava completamente limpo. Dois segundos antes estivera num emaranhado de homens suados e empapados de sangue, que cuspiam insultos uns nos outros enquanto se trucidavam. As imagens daquele momento me falham agora... algum infeliz havia sido cortado na barriga e estava se cagando em baixo de mim, eu podia ouvir outro infeliz vomitando, em algum lugar longe dos olhos. Eram os cheiros e os sons da batalha, mas agora tudo isso parecia um sonho, e ali estava eu, limpo com minhas armas e armaduras como estivera antes.
Embainhei minha espada e tirei meu capacete, um belo elmo com um rosto de lobo, para espantar os males da terra e amedrontar os inimigos, e olhando em volta novamente descobri uma ponte.
Não era uma dessas pontes que você provavelmente conhece, de madeira de olmo encimada por pilastras de tronco de carvalho. Muito menos uma daquelas decadentes pontes romanas feitas de pedra e mármore que alguns juram que irão durar pra sempre. Era uma ponte de metal, e parecia reluzir.
Me aproximei, e a cada passo eu ficava mais abismado. A ponte não tinha fim, ela seguia, e seguia, até sumir num monte de nuvens ao fundo. Abaixo dela, não existia nada, e aqui e ali grandes montes de terra surgiam, mas eles também sumiam no vazio abaixo, eu estava no céu.
Me aproximando mais, vi que não era uma ponte apenas de metal, era uma ponte de espadas. Milhares de espadas a compunham, e não só espadas, como alguns machados lanças , e centenas de armas mais, mas em sua maioria eram todas espadas, as mais diversas espadas, laminas que eu nunca vira nem sonhara, e ficara maravilhado.
Comecei a atravessa-la. Olhava para baixo e um frio corria pelas minhas veias. Cair ali era a morte, ou não. Quem sabe eu não caísse para sempre? Andar sobre aquela ponte era de certo modo engraçado, eu ouvia o metal raspando em metal sobre minhas botas, e depois me acostumei.
Era uma visão maravilhosa, e aos poucos, o monte do qual eu havia chegado desapareceu, e eu caminhava numa ponte de espadas indo do nada para lugar nenhum, mas de algum modo havia uma paz no meu coração, e uma certeza que sempre me levava em frente.
E lá, bem longe, avistei um portão. Era um portão de ouro, e numa trilha tempestuosa atrás dele, subia uma montanha até uma grande fortaleza, que reluzia negra e poderosa no topo daquela montanha, e eu cai de joelhos e toquei o martelo em meu pescoço, pois aquilo que eu via, era a própria fortaleza criada pela Valkiria para todos os guerreiros mortos em combate praticarem até o fim dos tempos, onde por fim, seriam liderados por Odin na guerra contra os monstros que decidiria o futuro da humanidade, a batalha do Ragnarok, eu olhava para nada menos que o Valhala, a morada dos Guerreiros.

Depois de vislumbrar aquela maravilha do topo do mundo eu levantei e continuei caminhando, e vi que haviam dois guardas nos portões de ouro, um deles sorriu pra mim, mas nada disseram e sem que nada fizessem, os portões se abriram, e eu entrei.
Era um grande pátio de treino, se bem que mal podia ser chamado de patio de treino. Centenas de homens se defrontavam e praticavam todo tipo de arte da guerra. Centenas deles simplesmente lutavam contra seus antigos inimigos, já que em Valhala, como é bem sabido, todos os homens que voce matou estarão te esperando com sorrisos para lutar com voce novamente por mais 10 mil anos. Ouso dizer que haverá uma cota de homens mortos por mim aqui.
Mas não era apenas isso. Uma luta de paredes de escudos acontecia num canto, e foi uma das coisas mais impressionantes que já vi. Homens gritavam insultos, chingavam e se decepavam, e um deles teve o braço cortado fora. Gritou como um moribundo, pegou o braço no chão, colocou no lugar e voltou para a briga, eu olhava aquilo completamente espantado.
- Novo por aqui? - Perguntou uma voz atrás de mim.
Virei-me e em seguida, rapidamente me ajoelhei.
-Senhor Rei....
-Não não meu caro Svein, não. Aqui não há reis. Aqui somos todos guerreiros, venha comigo, voce precisa conhecer a Grande Fortaleza.
Caminhamos. E vi de olhos arregalados esquadrões inteiros de cavalaria se chocarem uns nos outros e se destroçarem. Arqueiros treinarem tiros de flecha uns nos outros, e centenas de coisas bizarras e fenomenais das quais mau me recordo.
Subimos a trilha até a fortaleza, e apesar de completamente ingrime, não perdi o folego. Homens conversavam alegremente na porta, batiam nas costas uns dos outros, e presenciei pelo menos duas brigas. Comuns naquele lugar, percebi.
Então cheguei no portão e vi.
Cinco gigantescas mesas se estendiam da porta até quase no fundo do salão, onde duas escadas em aspiral levavam a uma mesa no alto, que dava para todo o salão.
-Vai encontrar parentes seus naquele canto a esquerda Svein, mas creio que a maioria dos seus antigos companheiros estejam lá no meio, a direita.
-O que é aquilo lá no alto? - Falei, apontando para a mesa pequena e ornamentada.
-Aquela é a mesa dos Deuses. Você pode passar por lá, mas não converse com eles, a não ser que tenha algo de importante a dizer. Perigosos os nossos Deuses.
Caminhei pela direita no salão, mas nao podia deixar de olhar lá no alto. Um homem gigantesco segurava um martelo de pedra na mão enquanto fazia uma coxa de porco inteira sumir com a boca. Era o próprio Thor. De costas para mim uma capa preta escondia uma criatura que parecia magra. Aquele, pensei, devia ser Loki. A frente os dois, Com um elmo de chifres e um tampão no olho, majestoso com sua armadura de guerra, estava o Deus dos Deuses, Odin. Na mesa dos deuses, percebi, algumas cadeiras estavam vazias, um ou outro se sentava lá, Freyr, Heimdall e Týr foram os que eu pude perceber, ou pensar que percebi.
Parei de olhar os Deuses quando um abraço de urso se chocou comigo.
- Svein!
- Rubezahl! Seu grande touro castrado!
Lágrimas vieram aos meus olhos, Rub e mais vários guerreiros vinham me abraçar, eram velhos amigos, velhos companheiros da parede de escudos, e todos eles estavam aqui, bebendo e rindo como antigamente.
-Porevit arrancou minha cabeça nas últimas três brigas, mas eu falei pra eles, eu falei pra eles! Quando Svein chegar nossa velha parede de escudos não se romperá jamais!
-Porevit? Eu não trucidei ele já faz mais de 20 anos?
-Trucidou senhor, e muitos poucos de nós morremos naquela briga, o que foi uma pena, porque Porevit vem vingando surra a tempo demais...
-Bom, parece que nossa sorte nesse mundo mudou, a coisa estava feia quando deixei aquele mundo... uma boa cota de almas deve estar atravessando a ponte de espadas nesse momento...
Uma mão encostou no meu ombro, me virei.
-Vejo que você continua feio como um Viking.
Era Loyefric, meu irmão, e nos abraçamos com lágrimas nos olhos.
-Vejo que você ainda não aprendeu a fazer piadas Loy.
-Repita isso e eu arranco sua cabeça dos ombros.
-Vou gostar de ver você tentar. - Falei, rindo.
-Depois, depois, papai está aqui, e descemos até o vale para ver mamãe as vezes. É um lugar feliz esse forte, lutamos, bebemos, e as garotas do vale vem todas as noites e fazemos uma danadas de umas orgias. A festa dos Deuses. Um bom lugar.
-Preciso ir ao pomar. - Respondi.
-Sim, sei que precisa.
O pomar era onde as pequenas almas iam quando morriam. Jovens demais, e lá, eu ansiava, iria encontrar minha doce e pequena Nara, arrancada de mim tão cedo. Me garanti, claro, de não atravessar a ponte de espadas sem estraçalhar o assassino dela, deixa-lo completamente desmembrado, arrancar suas orelhas, um único olho e sua hombridade, e poupei um dos olhos para que ele visse os tormentos que ainda o esperavam depois da morte e se arrastasse fugindo da cobra. E tive certeza, claro, que ele morresse sem sua espada nas mãos, para não ter que encontra-lo de novo aqui, e ele apodrecesse nas terras congeladas do Nifhiem.

-Cheguei ao pomar e a vi instantaneamente. Ela brincava com as outras crianças, e reluzia com seus cabelos ruivos cacheados como os da mãe, voando ao vento enquanto corria atrás de um dos garotinhos, morrendo de rir. Ela me viu, e seus olhos se encheram de lágrimas, correu e pulou nos meus braços, ainda tinha seus nove anos, e vivia sua juventude pra sempre.
E mesmo esperando ficar espantado com todas as maravilhas de Valhala, e se fiquei, poucas coisas foram melhores na morte que reencontrar minha doce e pequena Nara. Hoje, ando comendo joelhos de porco e tomo cerveja, luto ao lado de velhos amigos contra os velhos inimigos, e conto histórias e canções para minha pequenina nas noites eternas de luar, esperando que minha esposa venha para mim, no lugar onde as Valkírias cantam, os Deuses comem, os homens lutam e as fadas dormem, o Topo do Mundo, Valhala!

Que as canções durem para sempre e os bardos morram engasgados!

Amém!

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