Temos Ganso pro Natal

Por Antonio Fernandes

Batatas.
Doces, fumegantes, douradas e belas. Era naquilo que eu pensava. Porque? Não sei. Minha mãe fazia um refogado maravilhoso. Matava o ganso e servia com batatas. Matei ele algumas vezes. O Ganso. Sentia as serras da faca, via o sangue esguichar e maravilhava. Era nisso que pensava agora, olhando minhas tripas fora de mim, esparramadas no chão.

Ela fazia o ganso no natal, me lembro bem. Abria meus presentes sob a árvore, e fora da janela a neve caia devagar. Restavam batatas para comer até o ano novo, quando os fogos brilhantes iluminavam o céu de Londres e comemorávamos a virada do século. Os sons que escuto agora são os mesmos. Mas não mais tão divertidos assim.
Ri e engasguei com sangue.

Primeiro de janeiro de mil e novecentos. Tinha poucos anos na ocasião. Jogávamos bola no terreno lamacento da primavera, quando as chuvas inundavam Londres no começo do ano. Pulávamos o muro da escola e apanhávamos muito quando eramos pegos. Primeiro pelo professor. Depois pelo diretor. E por fim pelos nossos pais. As vezes, quando minha avó estava em casa, costumava apanhar dela também, mas a velha já estava mais pro outro mundo que pro nosso, e o inverno de alguns anos depois deu cabo dela. Velha diaba.

Eramos felizes. Brigávamos com os garotos da rua de cima e roubávamos pães de Jack Hoston. Apanhei dele uma vez, mas foi a pior surra que tomei. Tive várias costelas quebradas e ainda um braço. Quando saí do hospital minha mãe me bateu.
Era realmente feliz.

Apesar de ter apanhado muito na juventude, conhecer bem a sensação da dor, ela me parece familiar agora. Vejo minhas tripas esparramadas no chão e não tenho vontade de chorar. Não tenho vontade de gritar ou mesmo fechar os olhos. Só quero ir embora. Quero que passe. Quero que ela...

- ...indo! Vo... es... ouvindo! ...seu idiota! Maldito idiota! O que é que você fez?!

Esse é Abner Cohen, meu sargento. É um patife. Mas um patife que aprendi a gostar. É judeu também, e odeio ele por isso. Nenhum desgraçado que tenha ajudado a matar Jesus merece nosso respeito, dizia minha mãe. Apesar disso Senhor Cohen é um homem descente, e fez sempre seu trabalho direito, mantendo a mim e aos seus meninos vivos, como ele sempre diz. Bom, pelo menos até agora.

- Qual é a maldita primeira regra Collins?! Qual a única ordem que mandei você seguir?!

-Ficar vivo Senhor.

-E olhe só o que você me apronta, desgraçado filho da puta, como é ...

Não consegui escuta-lo por um momento. Algum infeliz pisou numa mina e viu pedaços de si voando pelos céus. Deve ter sido uma visão bonita. Melhor que a que tenho de mim agora.

- ... fazer quando o tenente perguntar por você?! Ei! Você ai! Temos um ferido aqui! É bom cuidar dele como se fosse sua mãe! Por Deus garoto, como eu gosto de você. Não vá se juntar ao resto de nós no outro mundo. Deus sabe como eu gosto de você.

Como eu disse. Abner Cohen é um homem descente. Levou quase trinta segundos no meio da confusão, apenas para tentar me acalmar e me dar uma morte descente. Dois garotos do regimento médico vieram me ajudar. Chama-los de regimento médico era uma piada, você sabe. Um deles era ainda mais novo que eu, e o que parecia mais velho estava definitivamente apavorado.
Não era realmente culpa deles. Nunca era. Não entendiam minha completa calma naquele momento. Eu sentia minhas tripas fora de mim e meu sangue jorrava forte pelo buraco da bala. Malditos alemães, eu deveria pensar. Não tinha tempo pra ficar puto com eles agora, estava preocupado demais em morrer.

Aqueles dois garotos enfermeiros? Bem, eles me drogaram com um pouco de morfina. Não que eu reclamasse, mas a dor passou. Agora eu sentia minha vida sumir, mas não conseguia percebe-la. Drogado. Eu estava drogado, e não só pensamentos como imagens vieram a minha mente.

Os pitbulls de Yorkshire brigando em rinha. Uma galinha sendo despedaçada pelo vencedor da rinha. Meus presentes no natal. Um peão, bolinhas de gude e uma nova bola de rugby. Meu pai cortando um carvalho pro natal. Ele cortou as mãos com o machado. Ele já não tem mais um dedo. Ele grita que é o pior natal que já viveu.
Minha mãe. Minha mãe atravessando a porta da cozinha. Minha mãe trás a travessa de batatas e ganso. Minhas irmãs mais novas pulam e gritam, felizes. Espere, eu estou entre elas. Meu pai tem um dedo enfaixado e uma expressão sinistra, mas eu não me importo. Afinal é natal. É hora de celebrar a vida, a felicidade e a harmonia. É tempo de celebrar o nascimento do Deus menino. É um tempo de paz.

Uma bela imagem com a qual morrer. Paz.

Nada como essa maldita guerra.

Espero que minha mãe supere bem, afinal de contas. Não gostaria que ela sofresse tanto. Apesar de todas as vezes que me bateu...

Bem, você sabe, eu ainda a amo, apesar de tudo.
















Ideia proposta por Vitória Novaes, Tema do texto: Batatas.

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