Póstumas Presentes

Por Antonio Fernandes

Quando caminho no escuro entre livros, sinto que os mortos me fitam.

Fitam-me e desejam-me, como uma cadela a desejar tal membro que a penetre. Sinto-lhes comendo-me as entranhas e desejosos de minha liberdade ardente só por estar vivo. Só por estar a comer cadelas em lugar que sirva.
Vejo seus olhos. Frutos de passados incestos. Erros mau resolvidos e mulheres mal amadas. Sonhos esquecidos de passados distantes que já não importam mais. Seus passados não importam mais, mas suas palavras vem atravessando os séculos.
Eu. Que aqui me concebo em carne em tais palavras românticas (ou quem sabe se realistas?) estou tão morto quanto eles. Imortalizo-me em morte para deixar a vida e entrar na vastidão dos dias da qual enquanto me lerem, ainda estarei aqui. Ainda junto deles.
O frio crava-me as entranhas ao passa-los. Vejo egos. Egos desnorteados que atravessaram quem sabe quantos séculos? Só para conosco estar. Olhos vazios em pupilas e íris, caveiras póstumas que me encaram sóbrias. Desejam-me até as entranhas só para ter-me o corpo. ter-me o membro. Ter-me o membro para gozar novamente a carne pútrida de jovens e novas e constantes virgens. Como os invejo.
Invejo-os tanto que demoro-me a passar por eles. Ainda que sejam mortos que me olhem. Ainda que sejam  pó do pó de galáxias distantes invejo-lhes pela capacidade de atravessar séculos póstumos para em meus ouvidos chegar. Para que meus olhos bebam sonhos de outros tempos que agora se somam aos meus.

Estou entre mortos, e demoro-me a conversar com eles.

Sim, conversei algumas vezes. Disse-lhes palavras em inglês balbuciadas ao vento. Disse-lhes os mesmos temores que seus corações outrora conceberam, as mesmas mazelas que a eles lhes foi posta em outras vidas. Recitei-lhes poesias. Suas próprias poesias. E vi seus olhos vazios chorarem. Sou máximo em desejar-lhes tal liberdade em cruzar milênios e eles são máximos em desejar-me. Desejam-me nú, quase em incesto. A carne lhes é tão querida que quase me atacam. me comem. Mortos me possuem, me devastam e me digladiam.  As vezes tocam-me meus ombros. Encaro seus olhos fundos ao nada e eles me respondem em seu sorriso cadavérico. Um dia meu momento virá.

Invejo-os por serem livres. São livres da carne, pois sim. São livres para continuar a repetir suas balbucias ano após ano e uma nova geração de carnes virgens lhes há de tocar as páginas. Lá estarão intactos, imortais. É dessa liberdade mortem que almejo de todo o coração. Não queria ser eu, escritor egocêntrico jovem a cruzar uma biblioteca escura a deseja-los. Queria se-los a desejar outro alguém que fosse eu.
Como os invejo.

E eles me invejam. Me invejam por ainda estar a escrever. Por ainda estar a imortalizar-me letra a letra nos ouvidos das próximas gerações, que ávidas, e cada vez mais cultas, irão desvirginar meus dizeres.

E não há mais gesto chulo e desnecessário que sonhar estar na pele de outros? Mesmo que não haja realmente pele. Comam-me, mortos imundos, mas deem-me um pouco de si. Deem-me dessa inspiração divina que os fez sobreviverem mesmo quando se foram. Essa confabulação eterna. Esse desejo de estar além dos anos que me são obrigados.

Os mortos me desejam tal que sexualmente. Eu os desejo imortalmente. Queria eu ser um morto andante, e aos meus trinetos falar. Falar-lhes das falhas que sei que falharam. Falar-lhes que não há escapatória a falha. Que ela nos é humana, mortal. Dizer-lhes que falhem e gozem da vida como gozei, em futuro, e gozarei, no presente (sei lá eu se gozarei no futuro?)

Comam-me mortos. Roubem-me a alma. Mas me juntem a vocês.
Quero tal liberdade entranhada no estomago, para que possa depois, me arrepender.

E só.


Comentários

Postagens mais visitadas