[Reescritos] Do Amor e da Guerra - Primeiro

Por Antonio Fernandes
Escrito em 11 de outubro de 2009

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Bizet: Carmen - L'Amour Est Un Oiseau Rebelle (Habanera) by Maria Callas on Grooveshark

A lua ainda brilhava alta e estrelada do céu da primavera e das constelações, vívidas, desenhadas, que exibiam toda uma magnificência esplendida do topo do universo duma noite clara e limpa.
Era tudo belo. E havia silêncio.


A cidade estava calma. Ruelas que outrora tiveram o sapatear de carruagens dos mais variados tipos agora jaziam quietas e silenciosas. Alguém espirrou num canto, um cachorro latiu nalgum lugar, e o silêncio voltou como se nunca jamais tivesse deixado de ir.
A cidade dos rios, 'una bella e chiara Venezia', era esplendida. Aliás, sempre esplendida, até por ser à muito considerada lar duma paixão juvenil. Um centro da moda nobiliárquica, atingindo seu ápice naquela primavera de mil setecentos e noventa e quatro, quando a ressaca pela perda das Treze Colônias começava a baixar, muito falava-se da loucura dos franceses e da invasão Britânica à Índia. Mas naquele lugar, o que se ouvia era a paz.
Nesse instante dobrava num córrego um barquinho. Bico apontado, formato chato. Vinha escorregando pelas águas límpidas e atrás, num pequeno poste, um lampião a óleo de baleia, aceso iluminava desfocadamente o ambiente. O barco era tão silencioso quanto podia ser a noite, não fosse o som do remo tocando a água e impulsionando-lhe em frente.
O barqueiro, homem alto, metro e oitenta, trajado com tradicional roupagem veneziana, assoviava Verdi enquanto remava. Levava aquele barqueiro dois pombos. Enamorados naquela mesma 'notte bella italiana', naquela mesma embarcação, iluminada pelo mesmo luar e lampião. Deitados olhando as estrelas, beijavam-se e afagavam-se, imersos um ao outro.
A mulher, alta e frágil, cabelos louros acastanhados agora desgrenhados, trajava um vestido branco arqueado como um Cisne. Os saltos altos, odiados, jogados num canto estavam esquecidos. Os olhos dela, de um castanho claro, cor de mel, fitavam o jovem em absorção.
E aqueles olhos verdes, naquele olhar britânico, que àquela noite escuros e misteriosos, fitavam-na de volta. O garoto, de poucos vinte verões, tinha cabelos curtos, vestia uma jaqueta vermelha das cores de sua pátria, calças de couro surradas em pó e um par de botas, que as calçava em seu oficio de matar. O mosquete jazia encostado ao lado, armado e a postos, contudo, esquecido, trocado por um par de olhos muito mais perigosos.
O corpo dos dois, naquele luar fantasioso, enroscava-se como um só. Abraçados navegavam felizes, descendo o rio, rumo a qualquer lugar.
Passou as mãos à cintura dela, fitou-a fundo nos olhos. Ao ponto de colar sua alma à dela. Esboçou um sorriso, um tal sorriso, que arrancou-lhe outro igual. E a garota sorriu. Levou a mão ao cabelo e acariciou, e depois as feridas do rosto, feias, cortadas do outro lado do mundo. Esgueirou-se até a nuca do amante, fraternalmente puxando-lhe a cabeça, colando lábios. Molhando-se. Um beijo que começava lento e gradual, apaixonado, estarrecido, para acelerar-se até a loucura. Até que as mãos já não fossem mais capazes de conter-se. Até que...Um tiro soou. Em algum lugar nas margens, um estalo. Vozes raivosas discutiam algo em italiano, porém num grito maior, dado por alguém em qualquer lugar, souberam.

Foram descobertos.

Ordenaram que o barqueiro lhes levasse a margem. Ágil e ofegante o homem remou. 
Do outro lado alguém gritou um novo reconhecimento. Serviçais da casa os viram, tarde de mais, ela já não podia mais voltar.
Rapidamente, prevendo a necessidade, rasgou-lhe o vestido, tornando-lhe saia, e logo que o barco atracou fugiram. 
Fugiram para o desconhecido, para a escuridão. Não sabendo o que o destino lhes reservava ou porque. Se trevas, ou amor, fúria ou alegria... porém lhes consolava um ao outro, ainda que logo apenas por uns minutos. Consolava a ela ter sobrevivido à um caminho pior.

Sumiram na noite. A escuridão e a paz, voltaram então reinar.

Silêncio.



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