Cold and Darkness III

ATO I

Pensa só num lugar escuro
desses pretos
que não se vê nada
com sombras que rondam o ambiente
com criaturas já feitas desfeitas
arrastando-se pela noite
o cruel limbo do espírito
onde há uivos, ganidos e latidos
de criaturas que uma vez homens
hoje cães
ladram pela umbra o desconhecido
resta-me nada
meus pedaços de homem desfalecem
nessa terra deserta salgada
escura
não encontro água de beber
nem comida de comer
emagreço e apodreço
lentamente
sinto desfalecer a natureza da carne
tal qual desfalece a natureza do coração
minhas esperanças ficaram perdidas
duas milhas atrás
a miragem
da garota loira que sorri
tremula num lugar à frente
mas quando chego
é só miragem
a imagem não se aproxima
parece sempre distante
e cada vez mais turva
cada vez maior
minha vontade de ficar
deitado nessa areia fria
de zero graus
desse deserto salgado
onde cães
que outrora homens
se arrastam
ganem e uivam
e meu ser
um dia lobo forte
hoje tem fissuras grandes
sangra
está chutado
maltratado
sou restos
que se arrastam na direção de uma miragem

ATO II


meu peito dói
como tem doído tudo
perco lentamente
a capacidade de me mexer
a desistência de tudo
antes sonho tão bobo
fica nítida e ocular
nunca fui de sentir tanto
que não aguentasse mais sentir
meus ópios de outrora
são fracos demais agora
não há veneno que eu beba
que amorteça a dor
do meu coração
talvez um veneno que mate
acabe com o sofrer
não sei
enquanto houver miragem
eu vou me arrastar
mas a miragem cada vez mais fraca
tem se tornado só
mensagens ignoradas e dias vazios

ATO III

três semanas no deserto
não me lembro meu nome
nem o que fui nem o que um dia
quis ser
hoje não sou nada
sou o cão como os outros cães
um dia fui gente
hoje sou qualquer coisa
não sei se cachorro ou gente
não sei se ser moribundo abandonado
a solidão já me arrasta
três semanas
a solidão já
me arrasta a três semanas
as mais longas da minha vida
a miragem ainda está lá
mas está tão fraca que mal posso ve-la
mas enquanto ve-la
eu vou me arrastar
porque há esperança
naqueles cabelos loiros
lá adiante
eles talvez já não precisem de mim
a miragem
talvez ela já esteja em outro lugar com outras pessoas
rindo e bebendo coisas
e se divertindo pra não pensar em mim
talvez eu esteja errado
em me arrastar
mas parar aqui
é perder a consciência
de se cão ou homem
se de ser ou não ser o que quer que seja
vou perdendo a natureza
do meu ser
o que ainda me move
nessa areia seca
e nesse mundo escuro de trevas
é que ali onde vou
alguém
vai me dar o que beber
o que comer
fazer-me sorrir
e me dar colo para deitar
carinho
e amor
tudo que um homem precisa
deviam redigir isso numa tabuleta universal
de direitos
ou qualquer coisa que o valha
mas aqui
agora
nem sei mais
se sou gente
nem sei mais
se tenho o direito
a sorrisos ou ao amor
acho que esse direito ficou
em algum lugar
trinta e duas milhas atrás
acho que meu direito a ser feliz
está perdido

ATO IV

uma tempestade de areia me assola
a miragem some
do meio da areia
e junto com a miragem
eu me vou
estou restos
não sobrou verso
nem nada
já não enxergo nada
porque sou cego
já não tenho sentidos
minhas unhas e dedos
ficaram nas pedras do caminho
meu peito é rabiscos
e vou deixar
o resto da alma apodrecer
as outras criaturas da umbra
cheiram o que sobrou
pra ver se há algo à aproveitar
mas eu já não havia o que aproveitar
a muito tempo
nem os vermes
tem razão para mim
vou esvair por completo
e não ser mais nada
a tempestade de areia
levou a miragem
e enquanto afundo no silêncio
da escuridão
as memórias de risos
palavras
e promessas de amor
dançam e circulam ao meu redor
memórias de que um dia fui gente
agora não sou
nada

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