Bailar Errôneo

Por Antonio Fernandes
Desenhos de Verônica Vilela 



Colecionava botões.

Pensava com seus botões. Era ruivo, mas do tipo feio. Contemplava seus botões enquanto pensava. Usualmente usava boina, havia fodido um par de garotas por isso. Gostava de joga-los ao ar e pega-los. Sentia-se a seu modo um malabarista fazendo isso. Naquele dia entrou num Subway.

Olhando para seus botões pensava no último documentário que vira no Discovery Chanel. Foi atendido por uma gordinha do tipo depressiva. Seu sonho era vivenciar uma situação de risco ao qual pudesse usar seus conhecimentos adquiridos no canal. Antes que pudesse dizer não, a gordinha havia posto alface em seu sanduíche.


Enfureceu-se. Tentou pedir pacientemente que tirasse o alface. A gordinha olhou-o com tês de tédio e demorou-se tirando as alfaces como se fosse sua obrigação. Idiotas! O mundo estava infestado de idiotas! Pensou. Todas essas gordinhas ao redor do mundo contratadas por patrões chulos para atender mau. Como alguém poderia gostar tão pouco do que faz? Mude de emprego! Morra de fome!



Tomou sua coca e sentiu o cérebro congelar. Revoltou-se. A única coisa que lhe acalmava seria a chance de assistir Star Wars V de noite. Comeu seu sanduíche achando-o seco. Deveria ter pedido mais molho.



Sua maconha havia sumido. Seu avô havia de ter fumado outra vez. Velho idiota! Passava as tardes vendo "leilões de bois" e resmungava tudo.
Inclusive estava ali, naquele momento. Havia resmungado com a gordinha depressiva pela ausência de canudinhos. A infeliz caminhou com corpo mole até a cozinha e trouxe de lá um saco de canudinhos. Demorou-se ainda para tira-los do plástico e coloca-los no recipiente.
Seu avô ficou feliz ao pegar o canudinho e sorriu pra ela.
Ela sorriu de volta, dali pra frente passou a atender todos os clientes bem.



Conversaram sobre se porcos realmente não conseguiam olhar pro céu ou se era apenas um mito. Seu avô insistia que havia visto um porco olhar pra cima quando era criança. "Não teriam sobrevivido à evolução se não conseguissem olhar pra cima!" - falou extasiado - "Teriam sido mortos por pássaros antes!"

Que maldito pássaro carrega um porco? pensou. Não importa. Bosta de discussão. 



Chegaram em casa. Sua mãe estava deitada, de bruços. Como sempre. Nunca soube quem era seu pai. Havia desaparecido assim que nasceu, sua mãe lembra-se de ter encontrado uma nota fiscal de passagem de ônibus para Fortaleza depois que desapareceu. Safado desgraçado! Ela balbuciava as vezes para ninguém em especial.



Sob a cômoda estava mais um dos poemas, de sua mãe. Falava sobre o tocar de Tchaikovsky e um liquidificador que tocava em mesmo ritmo da soneta. Ainda esbarrava em um pouco de amor, sobre maridos que abandonam o lar e corações partidos. Clichê. Pessoal. Sua mãe as vezes saía correndo do banho para anota-los. Os poemas. Dizia que os compunha lá.
As vezes chorava.



A empregada entrou pela porta dos fundos. Vinha discutindo com seu avô sobre os porcos, usando todos os argumentos que havia roubado do garoto no Discovery Chanel enquanto faxinava a casa. Num dado momento de algum modo malabarístico mudou o assunto para tricô. Seu avô estava ficando emputecido com a conversa. Saíra por um minuto para comprar cigarros e lá estava a maldita empregada falando sobre todos os assuntos de novo. Ninguém realmente gostava dela. Só mantinham-lhe ali pela preguiça de manda-la embora.

Sentou-se para assistir Discovery Chanel. Pelo iPhone, conferiu suas notas de fim de ano. Havia tomado recuperação em português por três pontos. Conselho de classe pros diabos!
Levantou-se para contar o ocorrido a sua mãe. Provavelmente seria despedaçado. Sua irmã estava dormindo embaixo do piano. Ela chamou-lhe e pediu para que tocasse 'Fur Elise'. Mandou-a se foder, já tendo um dia desprezível, e foi mostrar as notas à mãe.


Mostrou as notas à mãe. Ela gritou, berrou, disse que ele era idiota e retardado mental. Pronto, pensou, tudo que precisava pra hoje. Havia feito 87 em física mas tudo que ela pensava era nos três pontos de português.
Voltou pra assistir TV, apesar de sua mãe gritar que estava proibido de tudo até o natal. Que se dane.

Sua irmã havia saído debaixo do piano. Apesar de ser meio idiota, já estava na faculdade e cursava biologia.   Era esquisita. Meio idiota era ser bonzinho. Apesar de todo o 'Q' de madura tinha pôsteres e quadros de sereias e tartarugas em seu quarto. Tudo assim meio azul com rosa. Havia confessado-lhe que um dia escreveria sua tese de doutorado sobre a ocorrência de relatos de  garotas meio peixes em Tuvalu. Pobre garota. Retardada.

Estava tarde, desligou a TV e foi dormir.


Na aula, dia seguinte, sentou-se ao lado daquele garoto esquisito. Aquele que comia cola. Era desprezado pela escola, mas aparentemente não se importava. Alguém havia dito que a novata feia batera um boquete pro comedor de cola. Duvidava, mas havia certos momentos que acreditava. Não gostava desses momentos, tinha vontade de vomitar. Pensou no último documentário do Discovery sobre como proceder numa ilha deserta no pacífico. Bom, sabendo disso era menos algo a se preocupar afinal. Menos um jeito de morrer.
O professor passou matérias idiotas de um jeito chato. Não aprendeu nada naquela tarde. Foi pra casa com passos rápidos e apressados.


No caminho viu uma garota que não devia ter 10 anos lendo Dostoiévski. Quem seriam os pais daquela criança?

Olhava para a criança quando, indo atravessar, o sinal fechou. Correu. Vinha um ônibus a toda velocidade e tentou freiar. Fumaça saiu das calotas e pessoas curiosas pararam para admirar a cena.

Foi atropelado pelo ônibus. Morreu antes que pudesse se dar conta de quão 'Kenny' estava sendo. Que se dane. Morte de merda.
De que adianta sobreviver numa ilha do pacífico afinal?




E assim passa mais um dia na mente de Verônica Vilela.

Para acompanhar mais do trabalho da artista, acesse sua página no facebook, 'Valsa de Erros'.




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