Liquidação

Por Antonio Fernandes

Que tal uma colher de açúcar?
Doce toca tuas gustas patativas, você fecha os olhos e sente uma pontada de sabor repuxando tua língua.
Não é suficiente? Então vá até aquela velha vitrola. Saque um vinil empoeirado de Chico. Sopre-o e faça neblina. Coloque-o na agulha.

" - ..ntos poetas
    românticos, prosas,
    Exaltam suas musas
    com todas as letras,
    Eu te murmuro.
    Eu te suspiro
    Eu que soletro
    teu nome no escuro. "

Recoste-se numa cadeira de balanço para fazer ranger. Outra colher de açúcar. Vê? É doce, leve, tranquilo. Mas ainda não o suficiente,
não.

Apesar de tentar conceber não dá. Falta tristeza, melancolia, falta o vício e a vontade. Pois não!

E saca um cigarro. E acende. E tosta-lhe a ponta e traga a morte para as artérias. De capa preta ela lhe olha e lhe sorri. A dor de sentir-se vivo! Naufrágio. É peculiar que precisamos nos matar as vezes para sentimo-nos vivos. Não ria! Que mais seria o sentimento presente naquele copo de cachaça? Aquela pessoa nua cavalgando... copulando... dançando a morte gemendo e gritando!... Pois a morte! Há maior morte que a vida? Eles pensam em crianças, pensam em bebês e sonham com a vida. Eu vejo um infeliz prestes a ser obrigado a sofrer e ser torturado até teu único e derradeiro destino. Dar de comer as minhocas.

É você esse que descrevo, mas digo-lhe como se fosse outro para a ti poupar do pior. É melhor sempre fitar o caixão. É melhor sempre fitar o caixão e não estar ali, mas meditar e pensar que um dia estará. Será você ali deitado rodeado de hipócritas que dirão boas coisas de ti.
Boas coisas! Imagine só! Não ria! Você, seu filho da puta. Você que nunca fez mau a ninguém, nunca fez bem a ninguém. Na verdade nunca fez nada. Toda a sua obra terá desaparecido dos mundos em pouco mais de 50 anos.
Metade de um século e você não será ninguém.
Mas lá estarão eles falando bem de ti.

Pronto, agora já temos melancolia.

Outra colher de açúcar.

" - Me escutas, Cecília?
     Eu te chamava em silêncio
     na tua presença
     Palavras são brutas "

Sim, mas ainda falta alguma coisa. Doce, leve, calmo, melancólico... e posse! Vício! falta-nos o desejo de objetos, a necessidade de ser tudo nosso. De ter e ter e não deixar de ter.
Onde encontraremos tal agrado? Tal questão que remeta a esse sentimento? O sentimento que você e eu já deveríamos saber qual é.
Ciúmes.

Como encontraremos ciúmes numa concessão? Não consigo conceber algo que nos remeta aos ciúmes.
Ciúmes! E há idiotas que defendam-lhe com unhas e dentes. Dizem que um bocado de ciúmes é bom pra estar bem.
Imagine só! Conceber a criatura que você tanto ama como um objeto seu! Deseja-la e proibi-la de viver, de existir. Tal criatura não pode ter pais, amigos, nem mesmo um caso romântico não muito sério.
Enlouqueça concebendo o prazer, o tesão, o momento êxtase de imaginar ela ou ele, não sei que é, mas dando. Comendo. Gemendo, gritando, nu e por trás, na frente, em cima ou em baixo não está você.
Não está você.
Está outro.

Sim. Você, humano, a única criatura do universo que mata a si mesma, que mata a outros como ti, e que pensa que tudo é objeto seu. Enciuma-se pelas criaturas e quer te-las, e quer obriga-las a ser sempre com você.

Ainda não entendeu que não é o centro do universo não é?
Deixe-me recordar... Em 50 anos você não será nada.
Ainda assim vive como se fosse tudo.
A palavra para isso é patético.

Sim. Mas vejo agora, não preciso procurar ciúmes em lugar algum! Sendo humano eu sou o próprio ciúmes. Já me julgando o topo da cadeia alimentar posso dormir sossegado (e esquecendo-me das minhocas).


O doce duma colher de açúcar, assim como a falsidade presente no grão. O clichê de tocar vinil, ainda que a canção seja bela. A folga de sentar-se numa cadeira e balançar, ainda que o inquieto e os cigarros te deixem deslocado ali. E os cigarros e o ciúmes, para te lembrarem da morte e zombarem hipocritamente de todo esse super ego que ronda todo o quarto.


Isso, meu caro, é o amor. Não há segredos nele. É viciar-se em alguém e deseja-la como a um vício. É perder-se idiotamente em luxúrias e achar que conquista algo novo e inovador será.

Vou fechar as cortinas agora. Essa história não tem final feliz. O personagem principal sofrerá. O narrador morrerá e todos que a escutarem isso não cá mais estarão num punhado de dias. Toda a humanidade é um estoque em liquidação.

Almas pela metade do preço! Compre-as antes que acabem! Ainda é possível comprar garotas, então seja rápido!

Que a liquidação vermelha está acabando. E...
A vitrola para de tocar. A cadeira quebrou. o pote de grãos brancos (seria mesmo açucar?) está no chão vazio. O cigarro é uma bituca.

Atrás de tudo isso há um grande cemitério. Olhe! Veja!

É seu nome na lápide.




Comentários

Postagens mais visitadas