O Todo Maior

Por Antonio Fernandes
Com um movimento rápido ele levou a mão até a altura da própria boca, com seus lábios prensou-o pelo filtro, viu o papel junto ao tabaco carburando em frente aos seus olhos, e sentiu um jorro de tabaco e nicotina transformados em fumaça descer pela sua garganta, arranhando suas entranhas daquela mesma forma de sempre, uma mistura de agonia com prazer e remorso.
Naturalmente ele estava se matando. Virou uma esquina e esbarrou num mendigo. Limpou suas vestes como se tivesse encostado num monte de fezes e levou novamente o cigarro a boca.
É um jeito engraçado de se matar, pensou. Os filmes hollywoodianos sempre tratam de mortes lentas e agonizantes como as piores, e o cigarro era exatamente a pior delas. Leva décadas para fazer efeito, mas todos nós sabemos, o fim será agonizante.
Ele mesmo vira seu pai tendo seus últimos momentos num hospital. Já em estado de coma, seu último pulmão falhava e era ajudado por máquinas, feridas se espalhavam pelo corpo, já que seu organismo já não era mais capaz de cura-las. A falência mental durou apenas uma semana, antes que o restante dos orgãos trilhasse o mesmo caminho.
Ao lembrar disso deu uma nova tragada, forte e profunda, sentindo sua garganta protestar e soltando a fumaça de um modo prazeroso. O céu começava a nublar-se, e ele ainda estava a alguns quilometros do metrô.
O cigarro me matará também, pensou. Mas que sou eu no meio do espaço? sou um amontoado de átomos, que formam elementos que formam órgãos, que por sua vez fazem sistemas que movimentam o corpo que habito, corpo esse que nem sei se sou eu quem controla.
Constantemente se pegava pensando sobre isso. Desde que nascera diziam que era racional, e havia vivido assim até seus 14 anos, quando começou a fumar. Como podia ser racional? Sabia que aquilo iria mata-lo, sabia que estava entrando na porta ao pé de uma parede sem porta, numa caverna cujo o fim se faz em trevas, mas o simples estado de falsa calma que aquilo lhe proporcionava era suficiente para faze-lo fumar mais e mais. Como podia ser racional? Se comparava aos leões que tudo que faziam era caçar, e as árvores que só fazem crescer, ele também fazia apenas seguir instintos. Um bicho fantasiado de gente.
E pior ainda era sua dimensão no espaço. Ele, um ser humano, no meio de outros 9 bilhões de seres humanos. Pensando assim fica simples, mas se você se lembrar que 1 bilhão significam 9 zeros, 9 bilhões é meio acima da nossa capacidade de imaginar. É muita gente.
E toda essa gente é oque? Apenas uma espécie, no meio de mais de 500 mil espécies de bichos diferentes que existem no mundo, sem contar com mais de 700 mil espécies de árvores, e alguns trilhões de tipos de bactérias.
E toda essa fauna fica num pequeno planetinha, que tem uma pequena importância. Uma lua que gira em torno dela, mas quando você se lembra que esse pequeno planeta gira em torno de uma grande estrela, e demora 365 dias e 6 horas para completar uma volta, e mais, quando você vê que essa estrela leva 250 milhões de anos para dar uma volta na galáxia, e pensa que nossa galáxia tem 400 mil milhões (15 zeros) de estrelas e planetas, e que é apenas uma galáxia no meio de tantas outras galaxias...

Definitivamente sou nada. - Pensou.

Fumou novamente.

Provavelmente a maioria das pessoas já teve uma idéia dessa dimensão maior. Alguns chamam isso de natureza, outros de universo, e alguns ainda a chamam de Deus. Pra mim, todas elas mostram apenas uma coisa. Eu sou nada.

Mas um fio de pensamento aflorou em sua mente. - Tudo, tudo é constituido por átomos. Tudo isso é feito da mais simples e básica matéria de todas. Átomos. Mesmo que eu vá noutra galáxia, pise num planeta inimaginável, e colete um pedaço da terra dele, o que verei será provavelmente o que vejo aqui. Prótons e nêutrons, sendo orbitados por pequenos elétrons.
Eu, que me achei tão pequeno, comparado a eles sou grande. - E por fim se deu conta - Eu sou eles. Aqueles pequenos átomos me formam, mas também formam todos os outros corpos do universo. Não sou tão diferente de todo o resto das coisas. 
Afinal, o que sou eu? Eu sou o que como, já que tudo o que como é distribuido pelo meu corpo, e me dá sustentação para continuar andando, continuar lutando pelo meu pão de cada dia, continuar fumando.
Mas quando eu morrer, que serei? Serei comida de vermes, adubo para solos inférteis que comigo, passarão a ser férteis.
E meus minerais serão absorvidos pela terra, que alimentará as plantas, que servirá de comida animal, que será comido por outro animal, e por outro, e por outro, até que se chegue no mais poderoso dos animais, e este enfim morrerá, e será comido pela mais ínfima das criaturas, recomeçando o processo.
Então ele percebeu que a morte não era um fim. Não que ele fosse ter uma consciência própria e individual eternamente, mas que ele, sim, ele, aquele fumante perdido no mundo voltando para casa depois dum dia de trabalho, não era apenas um ser individual num planeta esquecido pelo universo, mas ele era parte da natureza, parte do universo.
Morrer não era o fim. Mas viver também não era o começo. O tempo todo ele estava a "morrer", assim como o tempo todo, novas moléculas eram criadas nele, dando novos começos para a vida. Não era algo que se pudesse marcar como "começo meio e fim". A vida era uma continuidade.
E quando deixasse de existir, como aquela consciência, sua vida e seu corpo serviria para alimentar novas consciências, e quem sabe um dia, ele, noutro lugar, noutra forma, descobrisse exatamente aquela mesma maravilha.
Ele não era só um ser qualquer, num planeta qualquer num universo qualquer. Ele era parte do universo. Era parte do todo. A maravilha da vida.

Jogou seu cigarro no chão e viu um carro passar por cima dele. Não podia continuar se matando agora. Era de importância vital que desse sua pequena contribuição, para que tudo continuasse girando, para que tudo aquilo continuasse acontecendo. Aquilo que uns chamam de universo, outros chamam de natureza, outros chamam de "Deus", ele chamou de "a melhor sensação do mundo." "Viver."
E embarcou no metrô junto de outras centenas iguais a ele. Um velho lia um jornal, uma mãe educava seus filhos e alguns adolescentes riam e escutavam música noutro canto. Dava pra ver aquelas vidas que fluiam ali paradas. Rindo, conversando, atentas as notícias recentes. E um dia elas não estariam mais ali, mas o que elas foram, passaria a ser outras pessoas, que habitariam as gerações futuras do planeta, fazendo com que o universo continuasse e continuasse.

Ah, que maravilha.


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