Dias que não me lembro e dias que não quero me lembrar

Por Antonio Fernandes

Uma garota uma vez questionou se eu não tinha coração. Tudo bem, não foi bem assim. Ela meio que gritou enquanto jogava meus pertences na cara, batia a porta e logo soltava um abafado e pretensioso "babaca" tentando me remorsar.
Não houve muito remorso. Não muito então. Joguei todas aquelas lembranças na moita, acendi um cigarro e contemplei meus próprios pensamentos.
Não é que não tenha coração. É que ele é vasto demais. Não amo mulheres, mas mulheres. Sou apaixonado por cada uma delas. Pelo modo como rebolam, pelos cabelos curtos e longos, peitos fartos e peitos lindos, coxas grossas ou pernas longas. Dou divina atenção ao modo como sorriem, aos olhares, a delicadeza e a brutalidade. Ao jeito simulado de ser a a constante desconfiança do mundo. Aquele jeito feminino pautado de realizar coisas.
Acho ignorante e desacertado homens que as trespassam. Quem buzina ou fala precaridades à elas nas ruas.  Que as tratam como um objeto de conquista, um troféu, um lugar pra se masturbar ou como porra nenhuma. Odeio esses homens. Ignoro e me afasto deles.

Vinha lembrançando tais coisas na fila da Circus. A casa de Rock'n roll havia completado dois anos a pouco como li nos tabloides. Estava afim de tomar uns tragos de whisky, fumar dois maços de cigarro, me apaixonar por alguém e ouvir rock'n roll pensei, principalmente ouvir rock'n roll. Estava sozinho, claro. Você pode se assustar com isso mas garanto: depois de sair pela cidade e arrumar brigas e merdas meia dúzia de vezes, terá conhecido cada rosto festeiro, brigão, garotas fáceis e drogados num raio de cinquenta milhas em qualquer direção. As sextas feiras mineiras atraem todo tipo inusitado.

Entrei, paguei, fui até o bar e bati no balcão. "Dois Jack's", falei. "sem gelo em copos de dose."  Virei os dois e fui curtir o som do triunvirado LEDIII, cover do velho Zeppelin que assombrava as noites belorizontinas com precisão admirável da velha banda britânica. Ouvi o berro inicial de Imigrant Song e na emoção esbarrei num pitt boy de polo vermelha. Desses que não sabem a diferença de "Let it Be" pra"Lek Lek". Desses que saem pra "balada" pra pegar "princesinhas" e arrumar briga. E ele tentou arrumar briga. E eu nunca fui muito de dizer não pra nada.

"Que porra é essa?" começou. "Desculpe princesa, não te vi ai." Ele me olhou com cara incrédula, de quem pensa "você não disse realmente isso", como se os quatro amigos dele fizessem alguma diferença. Aliás, quatro amigos que já estavam me rodeando e esperando começar uma confusão na mesma hora.

Típico caso, e já esperava eu que o típico caso terminasse tipicamente. Merda. Lá se foram os vinte cinco mangos que paguei pra entrar naquele lugar.
E nem daria tempo pra terminar de ouvir minha música.

Mas o inusitado aconteceu. Cabelos loiros e arrumados surgiram entre mim e ele. A tal garota abraçou o pitt boy, sussurrou alguma coisa no ouvido dele e o fez rir. Então ela olhou pra mim com o mesmo sorriso.

Era ela, puta merda. A porcaria da garota da outra noite. A maldita que deu pra mim no banheiro e me apaixonou definitivamente. Quem eu queria. Precisava, desejava. Claro que estava finamente vestida, pra se equiparar ao playboy com quem estava, mas não podia ser outra garota. Podia lembrar de cada conversa, cada palavra... cada gemido.

E num momento não estavam mais ali.
Então tive certeza absoluta que compraria uma briga com aquele bastardo filho da puta.

Procurei. Rodei completamente o maldito lugar. E se fosse pra ser expulso, pensei, então era bom beber tudo que houvesse pra beber agora. Logo virei outros 5 shot's de tequila, mas me preocupando com o sal e limão apenas no primeiro e último. "Immigrant" acabou, e o LEDIII emendou "Going to California". Merda. Não era uma boa música pra brigar. "Going California" era linda demais pra isso.

E então achei o cara. Ele olhou pra mim com cara de tacho. Idiota. Abri um sorrisão desses que só o Schwarzenegger sabe dar, numa gargalhada gigante. Devo ter parecido sinistro, pensando bem agora. Três passos largos, meu pulso atrás da orelha e quebrei o nariz do filho da puta. E uma cotovelada. E outro soco. E uma cabeçada. Cobri o desgraçado de pancada. Moí o maldito, mas então me veio um soco na costela, alguém acertou minha orelha com uma long neck e o mundo girou. Tomei um chute nas pernas e capotei no chão. Daí então não sei de onde vinha tanta pancada.

Fiquei apanhando condenado, mas na certeza que não era o único fodido da noite. Uns caras milagrosos compraram minha briga e foram pra cima dos amigos do pitt boy. De alguma forma vi a garota loira apoiada no balcão rindo. Rindo descontroladamente. Moído, estraçalhado como estava, ali no chão, dei um sorriso sangrento pra ela e fui retribuído com uma mesura.
A segurança chegou, espancou todos os envolvidos, inclusive eu, inclusive os infelizes que estavam assistindo.

Me lembro de ter sido jogado pra fora da festa. Não antes de terem descoberto minha carteira e arrancado meus 300 contos de lá. Merda. Cinco tequilas, dois Jack's, duas músicas do Led, um olho meio cego e um dente semi-torto não valiam trezentos reais. Mas ela valia, percebi. Ela valia.

Vi-a saindo do lugar, me perdi por alguns segundos em transe, contemplando-a. Tarde demais percebi que os quatro, também expulsos da festa, vieram pra cima de mim. Levei mais porrada, troquei mais alguns socos, berrei, corri pra cima do primeiro deles e ataquei com tudo que tinha. Errei um soco. Acertei mais um. Cotovelei. Chutei e levei a vantagem. Fui pra cima como podia. Dei muita, muita porrada.

E ele arrancou uma faca do bolso. Furou minha barriga. Tomei uma cabeçada no nariz,
E tudo apagou.




Texto dedicado ao meu vitalício professor de guitarra, que me iniciou no bom gosto musical de Led Zeppelin à Nirvana e Guns and Roses, Auder Júnior, guitarrista do LEDIII e um dos melhores músicos mineiros de que se tem notícia!

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