Talvez a folha, talvez o trem

Por Antonio Fernandes
"À une légionnaire."

Sinto alguma coisa sólida,
que ..
não. Se foi.
O vento arrastou-a para longe de mim,
como uma folha de papel
que sobe ao invés de descer.
E perdi.
E mesmo que outrora volte a encontrar,
perderei de novo.
O mistério da vida rondando o mistério da morte,
o mistério do fundo que conversa com o mistério da superfície
e a folha que me escapa as mãos,
e voa no vento como se não houvesse gravidade sequer,
contrariando o mistério da superfície
ao mesmo tempo em que contraria o mistério do fundo.

Perdi o trem, enquanto corria atrás à folha.
Aquele trem havia de me levar para os grandes palácios,
palácios da vida,
grandes palácios da morte,
Mas perdi-o, enquanto corria atrás da folha.
O trem era uma maria fumaça,
dessas do tempo dos nossos avós
partia de partida apitada,
e eu sabia que tinha tempo de toma-lo
mas deixei-o ir, pois não queria ir.
Não queria palácios da vida, nem palácios da morte, então.
Não queria que houvesse qualquer coisa que palpável
nos mistérios da superfície.
pensei, pensei mesmo que podia encontrar qualquer coisa que palpável,
nos mistérios do fundo,
por isso corri atrás da folha, que me escapou das mãos
quando pensei que a pegava.
E ela voou, subindo, contrariando a superfície e o fundo,
contra a gravidade, fugiu de minhas mãos.

Aquela folha era diferente
de qualquer folha que houvesse encontrado outrora.
Talvez tenha sido a partida do trem
que deu-lhe a lufada que precisava,
para voar de minhas mãos.
talvez os mistérios tenham se voltado contra mim,
divertindo-se em divertir-se de mim
divertindo-se em gozar-me
como se fosse um bobo.
Talvez eu seja, de fato
o bobo. Talvez esteja aqui para ser gozado,
como era o bobo.
talvez a côrte seja
essa estação, de madeira, e metal
cinza.
E a folha voa das minhas mãos enquanto o trem se vai.
Corro atrás da folha,
como se corre atrás à vida
e sinto que perdi-a e perdi-me
ela me escapa
sinto que houvessem grandes coisas para entender
no mistério profundo das coisas
talvez eu nunca saberei.
aquilo que busco é pequeno e delicado demais para minhas mãos grotescas

a folha se vai para outras mãos,
e vejo que outro a tem.
Meu trem se foi, apitando e virando a curva do morro,
enfiando-se debaixo do buraco no chão,
para palácios da vida, para palácios da morte.
Palácios da vida os que nos fazem felizes enquanto vivemos,
e palácios da morte os que nos farão ser lembrados por mais de mil anos
palácios habitados por grandes nomes que vieram do passado, e atravessaram nossos tempos,
mas perdi as duas viagens do comboio, e elas se foram.
Não terei os palácios da vida nem os palácios da morte,
e agora, já vejo que perdi a chance de correr atrás da folha,
que foi apanhada por outro
E sei
que voará também das mãos do outro antes de ser apanhado por outro.
estaremos sempre a perder nossos comboios
correndo atrás de tal folha, que voa
e que se diz perseguidora de grandes fins
mas seu fim mesmo é voar.
Desisto.
sento-me à soleira da porta
acendo um cigarro
para apoiar-me em derrota
na muleta que é o cigarro
e uma senhora de idade senta-se ao meu lado.
Ela sorri.
Me irrita aquele sorriso, mas ela sorri, e diz-me
que posso andar pelos trilhos do trem,
bem como posso virar-me em pássaro
e alçar voo.
Diz ela, não é preciso ter a folha, às mãos
Mais verdadeiros são os pássaros que voam ao lado das folhas,
E mais conquistadores são aqueles que não tomaram o trem,
fácil, simples, iberte, em sua partida apitada.
Mas os que marcharam pedra por pedra pelos trilhos do trem,
E alcançaram os palácios da vida e da morte com seu próprio suor e sangue,
e não há demérito nisso.

Então alcei-me em voo.
E voei.
Se atrás da folha ou através dos trilhos do trem,
ainda não sei.
Mas pelo lado como sopra o vento,
temo que vão ao mesmo lugar.



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