Gavage

Por Antonio Fernandes

(Gavage)
Também pode ser utilizado para fins gastronômicos: o "foie gras" (em francês, "fígado gordo"), é obtido através da introdução forçosa de grandes quantidades de milho através do esôfago de um ganso; posteriormente, um anel metálico é posto no pescoço do animal para impedi-lo de regurgitar, o que faz com que o fígado do animal se torne acinzentado, ao invés do habitual vermelho vivo, e fique até seis vezes maior, considerado nesse ponto ideal para a produção do patê. (Wiikipédia)


Ele vivia numa caixa.
Vivia. E gostava disso. Gostava da sensação quadrada de viver dentro da caixa. Era fantástico! Sua própria caixa. Claro que trabalhara muito para poder compra-la, e não era do tamanho ideal, talvez ela pudesse ser um pouco maior de um dos lados para caber... não, besteira. Era sua caixa e gostava disso.

Ela detinha quatro paredes de comprimentos iguais. Na parede principal, a mais usada, havia uma televisão. Uma dessas televisões antigas, de caixa. Ele se sentava à frente dela e mudava canais. Esportes, filmes, seriados, novelas... Era incrível! Sabe, era apaixonado pela liberdade de mudar canais e podia escolhe-los a vontade. Ninguém jamais havia sido livre como ele. Amazing!
Noutra parede ficava o computador. Desses antigos, de caixa. Gostava de pensar que dispunha de seu tempo de descanso e podia usa-lo como bem entendesse. Claro! A parte os dias de futebol(era Flamenguista doente) e as horas da novela desfrutava a sensação de usar o tempo que tinha do modo como o conviesse: no facebook. Claro! Ficava horas rodando scroll e tentando rir de piadas que, "oh god!" eram um plágio da sua vida. Apesar de ter todas as liberdades, por algum motivo usava essas liberdades igual a todas as outras pessoas, a ponto de tudo que acontecia com elas ser basicamente igual ao que acontecia com ele. Mas claro, era coincidência. Ele era livre e sabia disso. Dentro da sua caixa.
Noutra parede havia uma estante de livros. Os melhores livros do mundo! Paulo Coelho, Marcelo Rossi e Augusto Cury seus preferidos. Havia também uma prateleira inteira sobre como ficar rico. Havia lido todos e se orgulhava de saber exatamente o que precisava fazer pra ficar rico. Não queria porém, ficar rico, não. As pessoas diziam que pessoas ricas eram infelizes, ao passo que ele era tremendamente feliz. Mas, claro, desfrutava também a liberdade de poder ficar rico quando lhe conviesse. Amazing!
Na quarta parede havia uma porta. Era a parede de que menos gostava. Ela levava ao mundo fora da caixa e isso não lhe apetecia. Tinha que encara-la, claro, para ir trabalhar. Mas tinha medo.

Por trás daquela porta, não todas, mas haviam pessoas que viviam fora de caixas. Pessoas que fumavam maconha. Fumavam maconha!! Ele se revoltava com isso entre uma pastilha e outra. Sabe, é que havia largado os cigarros. Visto na televisão (e dizia, lido vários livros sobre o assunto, pois se orgulhava de ser até um pouquinho intelectual) que vivíamos agora na geração saúde, por isso decidira que podia parar de fumar (claro que fumava porque queria, não porque era viciado) mas claro que mesmo os coitados que não haviam se juntado a ele nesse novo mundo de saúde e ainda fumavam cigarros ainda eram melhores que aqueles garotos maconheiros. Eles o amedrontavam. Do que seriam capazes de fazer em meio aquelas gargalhadas de loucura? Poderiam, quem sabe, ataca-lo. Ficava-os vendo rindo e morria de medo de ser atacado. Onde estavam os pais daqueles garotos? deveriam tranca-los em suas caixas até que aprendessem a gostar delas.

Mas não eram só os garotos, eles eram só a ponta do iceberg. Havia toda sorte de pessoas que viviam fora das caixas. Punks, góticos, hippies, mendigos, coloridos, gays, skatistas, surfistas, pobres. Pobres! Pelo amor de Deus, como odiava os pobres! Vivia com medo do que eles poderiam fazer. E se decidissem todos juntos que estavam cansados de ser pobres e corressem para roubar tudo que ele tinha? Havia trabalhado duro para comprar sua televisão, e pago o computador em 12 prestações sem juros. Se roubassem-lhe a televisão e o computador podia sofrer do maior mau que existia. Do mau que lhe corroía o estomago e fazia roer as unhas. Um mal que havia feito de tudo, para fugir:
Tédio.

O tédio lhe enchia de pavor a ponto de entrar em pânico. Por isso, passava boas horas alternando entre bons livros, facebook e alguns canais esportivos. Se de repente a internet caía podia se refugiar nos livros, se a TV a cabo desse problema podia ir pro facebook, mas havia um certo momento que o levava a pilhéria.

Era quando no meio da noite a luz acabava. Não havia nada que ele temesse mais do que um apagão. Já havia tentado acender velas, mas parecia-lhe coisa de outros tempos ler com aquela luz bruxuleante. Vivíamos em tempos civilizados demais, dizia, um homem não podia ser rebaixado a ler à luz de velas! E ficava lá. Andava de um lado pro outro. Trombava nas paredes. Sentava-se. Tentava cantar musicas mas nunca sabia as letras (sabe, é que era tremendamente cult e só ouvia músicas em inglês) Então se cansava de cantar e ia tentar dormir. Mas ficava horas, horas se revirando na cama. "Pelo amor de deus, são nove e meia! Isso não é hora para um homem civilizado ir se deitar!" pensava.

A parte o tédio e as pessoas fora da caixa, vivia feliz. As vezes até saia de casa por livre espontânea vontade, para ir ao shopping fazer compras. Comia no Mac Donalds (claro, ser saudável demais não podia ser saudável) e olhava vitrines. Também saia de casa para ir a academia, andava nas esteiras e amava o frescor da civilização. Assistir TV enquanto caminha é simplesmente o auge da cadeia evolutiva. Não podiamos conseguir ir mais longe que isso.

E voltava pra casa, via TV e entrava no facebook. Gostava da sensação da caixa. Gostava da sensação de viver dentro da caixa. O cheiro. Ah, o cheiro fresco de "Bom Ar"! E a sensação de liberdade de poder fazer o que quisesse. Se sentia o centro, sabe? Era o centro da sua caixa e sabia disso. Talvez quem sabe, sua caixa não fosse o próprio centro do universo? Bom, não importava. Era o centro pra ele, e isso importava.
Era feliz e gostava disso.

E existiu feliz pra sempre.


In Box.




(Nota ao leitor: Se tudo isso lhe pareceu um grande espelho, não se preocupe, é mera ilusão. Espero que tenha-lhe irritado. Au revoir.) 

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