Do Amor e da Guerra - Prelúdio

Por Antonio Fernandes

Era possível ver a lua do vitral, absolutamente cheia e esbelta. Mas naquela noite, era apenas uma beleza a mais.
Grão-Duque de Veneza


A orquestra tocava Eine Kleine Nachtmusik - Mozart by Mozart on Grooveshark ao entrar dos convidados. Máscaras brancas, negras, demônios e um fantasmas da ópera. Senhores e jovens, frutos da nobreza, desciam dos barcos ao largo do canal veneziano. Era a festa de casamento da filha do próprio Grão-Duque de Veneza. Senhor gordo e barbado branco, que recebia seus convidados com risos esganiçados.
A jovem duquesa de rosto taciturno, herança de seus antepassados austríacos, sofria sentimentos conflituosos. Seu mais novo marido, o  Grão-Duque de Milão, já estava com mais de cinquenta, era um velho asqueroso que diziam ter envenenado o último papa. Bem como o emblema de seu Estado, era uma cobra. Uma personalidade política sorridente e cruel.

Só que não podia deixar de ter à diferença. Era inocente, a garota, tendo apenas seus dezessete verões, e estava apavorada. Era virgem e em meio aos risos das aias conseguira entender pouco sobre a tal "cópula". Disseram-lhe que doía, mas que a seguir seria "como estar no céu, mas que no inferno." De algum modo parecia também que aquilo fazia os bebês. Aterrorizava-lhe a ideia de ter filhos, principalmente a de morrer no parto. Aterrorizava-lhe também a ideia criar filhos. aterrorizava-lhe tudo. Seria a terceira esposa do Grão-Duque de Milão, sendo que nenhuma das outras duas havia parido filho algum. Versavam pelos cantos que fora o próprio Duque quem envenenou-as. E se fosse infértil? E se não conseguisse parir filho algum?

Estava apavorada demais.

Grão-Duque de Milão
Mas sorria. Sorria e olhava novamente o salão. Apesar de todos os medos, era sua festa! Seu baile! O salão parecia menos largo quando o viu pela primeira vez, mas agora cheio de mesas, serviçais e ainda os convidados já chegados, perambulando, conversando e rindo, parecia de certa forma menor e completo. Lá ao fundo, escadas duplas davam ao segundo andar, onde havia uma biblioteca, uma sala de cavalheiros, e, o quarto. O maldito quarto. Não, não iria pensar nisso, havia coisas melhores naquela noite.

Olhou-se no espelho, pela milésima vez. A máscara de Cisne era linda, majestosa. Seu vestido branco, armado dava-lhe força e delicadeza. Os espartilhos davam-lhe porte, mas também malditas dores nas costas e um péssimo respirar. As chagas de ser uma dama, pensava. puxou e brincou novamente com sua franja, distraidamente, mas apenas o suficiente para tomar um tapa nas mãos de sua mãe, repreendendo-a e alertando-a, ao que o anunciante declarou:

Verdi: Triumphal March From 'aida' by Verdi on Grooveshark
 
- Entrando agora acompanhado de sua guarda, Vossa Excelência o Duque de Wellington,  'Signor' Arthur Wellesley, general, político e comandante maior das forças na Índia Imperial de Vossa Alteza Imperial, o Rei Jorge III, Soberano da Grã Bretanha, das Treze Colônias, da Índia Imperial, da bláh... bláh... bláh...


-Já um tempo que não nos encontramos em Arthur?
-Vejo que continua sudável, Grão-Duque. Desde quando não nos vemos?
-Desde Hannover imagino. Como vai a guerra, meu sobrinho?
-Estive em campanha na Índia, como bem sabe. Arrumamos as coisas por lá. Agora nosso Rei pode se chamar por mais um título. Estou a caminho de casa afinal de contas.
Duke of Welligton
-Muito bem, muito bem! Como eu amo o clima quente da nossa amada Inglaterra! Sua família sempre foi muito boa Arthur. Você sabe como eu sempre gostei muito do seu tio. Quando chegar em Londres, faça-me o favor de manda-lo vir me visitar, ein? Agora, onde estão os modos! Aqui está minha esposa, a nobre e linda Grã-Duquesa de Veneza, e a 'grazia della notte', meu grande amor, minha filha!



Com um sorriso e comprimentos rápidos, o Duque falou a ambas algumas palavras, cortesias simples, colocou sua máscara e entrou no salão. Atrás dele porém, um dos soldados da guarda fitou os olhos da noiva. Eram de um castanho claro, de uma diversão, dureza e felicidade, simultâneas. Uns olhos insanos, perdidos, e por aquele segundo fisgaram-na completamente. Deixou-se levar pelo olhar enquanto ele, o soldado, caminhava lentamente ainda olhando-a, seguindo o Duque. Perdeu-o por fim.
Era apenas um resquício de juventude, pensou. Não era hora de se apaixonar, afinal, iria se casar.
E suspirou.



Os convidados todos chegados, a multidão se formou ao entorno do grande salão. Risos e taças de vinho brindavam, e ouvia-se línguas de todos os tipos. Alemães e austríacos, poloneses, o terceiro príncipe da Rússia, nobres do sul da França. Além do duque inglês, haviam mais dois irlandeses e um escocês. As nobrezas da Sicília, Milão, Veneza, Roma, Napolês e Gênova estavam todas lá, com a exceção do Grão-Duque de Mônaco, que se ausentou por motivos de força maior. Um jovem general francês, 'Qualquercoisa' Bonaparte havia iniciado campanha e invadido as terras, ao oeste. Era de certa forma bom para todos, já que enfraquecia os monegascos e dava oportunidade de roubar-lhes terras e riquezas logo mais. Parecia óbvio que as forças militares monegascas, superiores as francesas, haveriam de esmaga-las. Exatamente por isso, nenhum outro Estado italiano se dispôs a mandar uma única tropa em auxílio, e nem também o Grão-Duque de Mônaco se dispôs a pedir.
Piano Concerto N.21 - Amadeus Mozart

Ao invés disso, havia festa.

E do topo da escadaria, ao surgir esbelta e maravilhosa a noiva, vestida de branco com duas asas majestosas e uma máscara de Cisne, o salão rompeu em aplausos.
Piano Concerto No. 21 - Mozart by Mozart on Grooveshark




Ela desceu as escadas, degrau por degrau, e seu noivo a esperava no fim. Pegou-lhe pela mão, no que irrompeu nova onda de aplausos, e caminhando ao centro do salão, puseram-se a dançar.

- Meus parabéns para nós, recém Grã-Duquesa de Milão, como vão seus sentimentos?
-Estão encantados e maravilhados marido, tudo hoje é lindo.
-Espero que esteja tão ansiosa pelas núpcias quanto eu.
-Estou ansiosa, marido.
-Espero que esteja mesmo, e espero que me dê filhos, muitos filhos.
-Darei...
-Sim, ouviu o boato de que matei minhas ex-esposas? Imagine só! São desgraçados esses que sorriem pra nós.
-Tenho certeza de que não é verdade, marido.
-Oh, mas é verdade, é verdade. e se não me der filhos você morre também.

E com um sorriso largo, estendeu-lhe a mão e cumprimentou o público, que ovacionou e aplaudiu energicamente.
E passou-a para o pai, que valsou. Outros casais também se juntaram a pista.

Marquês de Ca'Savio. O tio.
-Como se sente pelo seu novo marido, minha filha? Erro meu, Grã-Duquesa de Milão!
-Estou encantada papai.
-Espero que esteja mesmo. Veneza e Milão não vem de uma boa história juntas, e estou esperando que seu casamento possa arrumar as coisas. Com a morte do meu cunhado Papa, que Deus o tenha, perdemos muita força no Vaticano, e estou contando com esse casamento para que tenhamos um novo Pontífice do nosso lado. Não me decepcione!
-Não decepcionarei papai.
-Dance um pouco com seu tio, ele está maravilhado com sua beleza e apavorado com seu casamento, acalme-o.
-Vou sim.

Estendeu também a mão, e com os aplausos passou-a para o tio.

-Sobrinha!
-Olá.
-Não pense que não vejo. Seu pai é um inocente de coração enorme, o que seria uma ótima qualidade se não fosse Grão-Duque. É uma pena que nosso irmão mais velho tenha morrido nas mãos daqueles Sicilianos desgraçados. Apesar do gênio ruim, teria dado um grande governante, que Deus tenha a alma dele. Mas quem herdou foi seu pai, com todo esse coração otimista, e olhe só! Te entregar nos braços daquela cobra!

Ela riu.



-Vou enfiar o punhal na barriga dele tio.
-Sim senhorita! E vai torcer! Diga a ele que é pela morte do nosso cunhado no Vaticano.


E com uma ovação, deixou-a para outro conviva, que com um cumprimento, tomou os braços da noiva.

Flower Duet by Lakme on Grooveshark

-E quem é você?
-Eu sou um segredo.
-Um segredo?
-Sim.
-Que tipo de segredo?
Grã-Duquesa de Milão, Noiva.

Ela olhava nos olhos da máscara, e se deu conta, era o soldado inglês.

-Do tipo perigoso meu bem. Aliás, parabéns pela festa.
-Obrigado. Como... como te deixaram chegar aqui?
-O general nos dispensou, estava meio bêbado e falou que estava cansado do exército.
-E te deixaram dançar comigo?
-Não me proibiram.
-Posso te contar um segredo?
-A mim mesmo?
Ela riu.
-Não, outro segredo.
-Sim, madame.
-Estou apavorada.
-Com o que?
-Com tudo isso. Com a festa. Ao que tudo indica, meu destino é ser envenenada em algum castelo da Lombardia.

Ele riu.

-Porque ri?
-Porque toda essa nobreza parece fresca demais. Presa demais. Vocês estão todos amarrados pelo poder.
-E você não se prenderia ao poder se pudesse?
Ele olhou para o teto.
-Eu tenho uma alma livre, madame.
-Então porque está no exército?
-Eu matei um desgraçado em Londres, ia ser enforcado quando os recrutadores do Rei me tiraram a corda do pescoço. Fui pra Índia. Lugar horrível.
-E quem você matou mereceu?
-Sim.
-O que ele fez?
-Não me deixou ficar com a mulher dele.
-Então não mereceu.
-Ele espancava ela.
-Então mereceu.
-Sim.
Dançaram por um tempo, deliciando-se um das mãos e dos olhares do outro. Algumas pessoas perguntaram-se quem era o jovem fardado que dançava com a noiva, mas ninguém se deu realmente ao trabalho de descobrir.
Guarda de Wellesley, Soldado Britânico

-Conte-me da Índia.
-É o lugar mais perto do inferno que existe.

Ela riu.

-Não pode ser tão ruim assim.
-Você não foi atacada por moscas, por homens negros como carvão, ferozes! e uns malditos elefantes.

Novas risadas.

-Gostaria de fugir com você.
-Bom, fuja.
-Qual chance há?
-Aquela que você desejar.
-Pensarei no seu caso, parece que vem vindo mais um nobre. Pelo jeito torto de andar, um alemão.
-Estarei te esperando no arco dos fundos.
-Estarei lá antes que me chamem para as núpcias.
-Deal.



O Grão-Duque de Veneza fumava um charuto, especiaria rara e deliciosa, uma daquelas coisas do novo mundo, e conversava com seus primos bascos quando um serviçal lhe tocou o braço.

-Senhor, às núpcias?
-Sim, sim! vamos! Mande chamar minha filha!

Mas ela não foi encontrada. Reviraram o salão. Olharam os cômodos, por fim até os cachorros foram colocados à busca.
Mas não houve jeito.
A noiva desapareceu.

Sabre Dance by Khachaturian on Grooveshark

Veneza

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