Sento-me

Por Antonio Fernandes

Sento-me aos pés do mundo
ouvindo os carros das gentes que passam
os sons dos grilos cantarolando a imensidão solitária
a montanha negra se põe a minha frente
o mar de luzes pisca como deviam piscar as estrelas no céu
mesmo não havendo estrelas no céu
e tenho sentido tanto!
como não sentia a muito tempo
havia solidão nos meus dias
e as alegrias eram tristes
e as risadas eram falsas
e os olhares choravam por dentro
quando eu não queria mais estar só
o negro da montanha e do céu
como que zombam do estrelado da cidade
mostrando que há muito mais infinito
que o nosso finito
e que existem coisas mais pra se fazer
pra se sentir
pra se pensar
que se pode fazer nesta vida
ela me surgiu
e veio me olhando inocente
sabe, inocente?
como aquele olhar do Tigre
enquanto te ronda
sempre achei que passasse uma certa tranqüilidade
aquele olhar
assim ela veio
com aqueles olhos da cor dum oceano índico
me hipnotizando inocentes
e de repente
ela se joga
e me vejo em prantos, preso em sua armadilha
de tigresa
e agora todos os momentos com ela
são doces como mel do néctar do Olimpo
todas as noites com ela
explodem como explodem os vulcões de outros planetas
e quando ela diz 'eu te amo' eu fico
bobo, perco me todo e me desmonto
e eu dou tanto de mim por ela,
como não tenho dado nem por mim mesmo
e me faz, tão bem!
olho as montanhas negras da noite
sem estrelas
prometeram-me hoje outro planeta
que estaria brilhando no céu
mas não vejo nada
sequer lua, daqui onde me sento
vejo apenas a abobada estrelada
da cidade, das pessoas
com sua patética natureza de iluminar o lugar errado
antes víamos o céu, e ficávamos maravilhados
hoje nos maravilhamos com o céu
que são as cidades
essa imensidão de vida atravessando concreto e aço
e perdemos o céu
que é muito maior, e mais belo
construído de luz e calor
e dos vulcões e das explosões de Galáxias inteiras
que se chocam e das andrômedas
onde foi que nos perdemos?
onde foi que me perdi?
naqueles olhos? Naquele jeito
chato, que parece tanto comigo?
me perdi no toque leve?
na esperança de ter alguém
com quem eu possa me confessar?
nunca me importei com a sinceridade
sempre me pareceu uma ilusão tola
o mundo não é sincero, eu dizia
tudo é tão sofístico
mal posso conceber alguma realidade
tanto quanto poderia segurar água com os dedos abertos
mas de repente a sinceridade tem se tornado um valor tão grande pra mim
e tenho sido leal dum jeito que jamais me imaginei
tenho sido leal a ela, e tenho sido leal a mim
não sei se mais por ela que por mim
ou mais por mim do que por ela
mas tenho pra mim agora que não poderia viver
sem tanta sinceridade
alguém cracareja aqui ao meu lado
lembra-me do som do silêncio
e um novo silêncio, que me é gostoso
se junta ao silêncio dos grilos
o silêncio do digitar, de compor,
esses meus sentimentos que se derramam por ela
ela me contou
do homem ruivo e barbudo
e depois completou
de pelos ruivos por toda parte
e que tiveram amor antes que pra ela
eu sequer existisse
e eu sei
que não tenho o direito de ter esses ciúmes
mas não posso faltar com minha própria sinceridade
e dizer que não os sinto
o ruivo
a figura que idolatram os narcisos
que os acham tão belos!
Sei porque tive eu defendido serem as ruivas
as mais belas de todas, por muito da minha vida
apesar de já não ser mais algo que me interesse
mas não deixo de saber da beleza que há
no ser ruivo e vendo agora
acho que sei o que me agoniza
me agoniza imaginar que ele tenha tido ela
e que ela tenha tido esse narciso
tenho ciúmes do narciso
tenho ciúmes do belo que não sou eu
e esses ciúmes nascem do medo
de um dia ela encontrar alguém melhor que eu
que lhe faça mais feliz que eu
sei
que são pensamentos bobos
que são medos toscos
que as coisas são o que são
e se um dia eu perder ela...
se um dia eu perder ela..
e sinto um nó na garganta
se um dia eu perder ela vai doer
Deus! Como vai doer!
se imaginar quando ela não era minha dói
perde-la doeria mais
que perder a mim mesmo
e veja que quando perde-la
eu sinceramente perderei a mim mesmo
e sabe Deus em quantos cacos eu estarei
e quantas vidas me demorarão
pra me reconstruir
e é fascinante
como eu, que sempre fui o medroso
que sempre dei um passo de cada vez
que sempre me assegurei das coisas vitais
mecânicas
para minha sobrevivência
fiz questão de machucar e ser um monstro com
mil garotas, só pela segurança
de ter a cama quente e não ter que me preocupar com o amanhã
sempre fiz questão de ser amigo de todos
pra que não houvesse contas pra acertar
e por ela
a mais livre das criaturas
a mais volátil
o pássaro que se vai
uma van toma minha atenção
estacionando ao meu lado
no topo do mundo
mas me recomponho
e continuo
ela, o pássaro!
que tantas vezes mostrou que eu menor sopro
voaria no vento e me deixaria só
e por ela
creio que venci o maior dos meus defeitos
que era esse medo que me comia
por ela
eu sou corajoso
corajoso
eu tenho a coragem de arriscar todo o sofrimento do mundo
porque com ela eu sei
que posso ser o ser mais feliz do mundo
e tenho coragem de mudar
tenho coragem de lutar
tenho coragem de ser o que finalmente eu sempre quis ser
feliz
e já não importam garotas pra aquecer a cama
mas não é que meu tesão morreu
não é que eu não queira mais seduzir ninguém
é que hoje só há uma pessoa que me mata de tesão
e que me dá vontade de seduzir
todos os dias
porque preciso seduzi-la
todos os dias
e como hoje, num erro
e puf!
ela já não me toca
e preciso seduzi-la de novo
e de novo, e Deus!
como isso é trabalhoso!
e como é maravilhoso!
ter que conquista-la uma vez por dia
quisera eu
e meus olhos se enchem de lágrimas
quisera eu poder conquista-la todos os dias
pelo resto da minha vida
eu seria o homem mais feliz do mundo
todos os dias da vida
mesmo que me arriscasse
como hoje, a terminar desolado
pensando num ruivo que nem existe
e quase-sozinho
sim, quase-sozinho
pois não me sinto sozinho
e me sinto sozinho
naquela solidão das estrelas
estrelas do céu, estrelas da terra
mas não me sinto sozinho, aqui
no topo do mundo
porque há uma estrela
que está dentro do coração
e que hoje me acompanha por todo caminho que eu vá
e ela é um pássaro que voa ao menor erro
e Deus!
como tenho feito tanto esforço
pra não errar
e tenho finalmente não errado
e sendo o bom, mais do que o mal
haja nessas palavras mais sinceridade
que toda a sinceridade do mundo
meus olhos estão molhados
e posso,
sim, eu posso
posso até tentar sorrir
por mais desolado que esteja
posso sorrir da felicidade que são
aqueles olhos azuis
que me olham do céu estrelado
da cidade estrelada
do meu coração estrelado
Dessa estrela que eu tenho e se vai
sozinho não-sozinho
aqui
onde me sento aos pés do mundo

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