Fantasmas Visíveis

Por Antonio Fernandes


Baseado em fatos reais.


Ancião Poliglota - parte à primeira



Subo ofegante os poucos lances de escadas da casa de meu pai. O cigarro no bolso, um Chivas dezoito carrego numa mão, enquanto na outra carrego dúvidas.
Três drogas. Três. Se harmonizam.

Saio pela porta da cobertura. Ela trava ao abrir e se arrasta. Ao sair, me deparo com um céu recheado de estrelas, milhares delas disputam a possibilidade de aparecer, já que o orgulhoso sol se escondeu novamente. A maravilha do universo, do qual invoco respirando fundo, sabendo que a matéria que está lá, naquelas anãs brancas colossais distantes que o próprio número de dígitos não se pode contar, é a mesma matéria que está em mim. O universo é o que sou. Eu sou o que o universo é. Ele é. Eu sou. Nós somos. E tudo se faz em harmonia.
Menos as dúvidas que carrego nas mãos, a pior das três drogas.

Puxo uma cadeira e me sento.

Já faz um tempo que o conheci. Estava num intervalo de aulas num dos digníssimos momentos aleatórios da existência, agora já não me recordo mais qual foi o exato momento. Ele surgiu como essas pessoas costumam surgir. Veio maltrapilho, de olhar vacilante, boné velho e roupas desgastadas. Nos pés uns chinelos desalinhados, e ferimentos graves e horríveis escaramuçavam as duas pernas, de dar dó.

Cheirava a merda.

Veio e se sentou perto de nós, às portas do cursinho. Também portas de entrada da universidade, mesmo os alunos que estão sempre lá cabulando uma aula vivem de assuntos como política, filosofia, legalização da maconha e uma ou outra fugida para queimar um. São garotos inteligentes, aos seus modos criando os contornos da existência que provavelmente os levarão para carreiras sólidas e salários altos. Um mendigo, ali sentado criava uma desnivelação difícil de não notar, até mesmo para algumas pessoas já calejadas de fingir que não vê. Que não há.
Antes de todas as outras percepções é importante salientar que percebi nele a velhice. Era um homem de certa idade que dificilmente uma vida toda na rua deixaria chegar, o que nos leva a suposição de que algo, em algum momento o teria levado para a rua. Tendo em prévia o conhecimento, adquirido com meu pai, que mais da metade dos moradores de rua estão lá por opção e não falta de opção, pela idéia chegava-se a conclusão de que seria um sábio ou um louco. Pelo menos para mim parecia isso.
Ele vinha com ideias risíveis e admiráveis. Percebe-se em dados momentos que o indigente armazenava certas porções de conhecimentos aleatórios infindável. Comentou numa hora sobre a faculdade de Sagres, fundada pela coroa portuguesa no tempo das grandes navegações para auxiliar nas descobertas que auxiliassem a marinha portuguesa. Noutra comenta sobre Colombo e diz que morreu pensando que havia descoberto as índias, e não a America. Fala sobre sua terra natal, Sete Lagoas, e seu sonho de voltar para lá.  Diz que já esteve no Afeganistão, o que leva vários jovens ao riso.
Em dado momento ele responde alguém em inglês. Eu me intrigo e questiono um rápido "hey men, do you speak inglish?" com um certo ar de diversão, no que, par minha impressão, ele rebate "Yeah men, i speak inglish. Eu falo inglês."
Era a deixa que eu precisava para dar atenção ao velho, e começo a perguntar-lhe coisas simples num inglês simples, no que ele responde tranquilamente, e de um jeito irônico, sempre traduz as próprias falas ao final.
Em dado momento ele me pergunta algo, no que respondo um "Jah!' - 'Sim' em Alemão - , e ele diz "Oh! This is Deutsch!".
Impressionado, cabulo um "Sprechen Sie Deutsch?" Ele ri e replica "nine, nine, nine, nine!" e gargalha.
Me divirto e forço outro ponto, questionando "so, parllez-vous françois?". Ele ri "Oui, oui, a petit monseiur. Pouco. "  "J'ai aussi" - respondo - "Petit petit!" Ele se diverte, diz que aquele que pensa que sabe demais é tolo, e que sou um grande sujeito pela minha humildade. Sim, acho que sábio e louco, eu penso.
Me despeço com um "See you later!" e vou estudar.

Há certa consideração importante a fazer sobre esse encontro. Eu havia, veja bem, viajado para a Europa alguns meses antes. Por dito motivo, havia aprendido certas introduções bem básicas de algumas línguas. Era capaz de manter uma conversa estúpida simples em francês, xingar em três ou quatro idiomas (vocábulos que não vem ao caso aqui) e apenas perguntar se alguém falava alemão, em alemão (Sprechen Sie Deutsch). Para finalizar, já possuía um bom inglês razoavelmente péssimo, e um espanhol que frequentemente se tornava um portunhol.
Ou seja, não sou um poliglota, apenas um ator. E sei representar.



Largo a caneta e deixo meus rabiscos. Caminho até a ponta da cobertura, tendo certa pouca dificuldade em desviar das plantas ali prostradas, acendo um cigarro. Trago a fumaça com certo vigor de primeira tragada e olho admirado as estrelas que são 'eu'. Lindas.
Eu visto uma camisa polo listrada num laranja escurecido e preto. listras largas. Aleatory. Meus sapatenis, comprados para festas e fins de semana que com o tempo se converteram em diários e foram cruelmente surrados. Uma calça jeans britânica roubada do pai e um cinto que ganhei do padrinho.

Lembro-me de um curto caso sobre o professor de filosofia do cursinho. Disseram-me que no ano passado ele havia levado quinhentos reais para a aula, apresentado-os vigorosamente para a turma, e dito que os daria para quem quer que provasse que alguma coisa além de si mesmo existia. Ninguém conseguiu.
Noutra ocasião, contei a história para alguém, mas não pude deixar de amplia-la e representa-la. Falei que o professor inclusive mantinha a aposta contínua, e qualquer um que fosse podia ir até ele, provar que qualquer coisa existisse para ganhar os quinhentos reais, e que fatalmente nem assim ninguém era capaz de prova-lo. Quem conta um ponto aumenta um ponto. Mas uma coisa é certa, não há certezas de nada. C'est la Vie.

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