Dos Olhos do Falcão

Por Antonio Fernandes

Eu olhava espantado aquele céu luminoso de uma noite que reluzia ao brilho das estrelas. E que estrelas. Eram milhares e milhares delas, que se espalhavam pelo céu preenchendo todos os cantos daquela abobada noturna. E no centro de todas elas, sua rainha reinava forte e viril.
A lua, que cheia e poderosa preenchia boa parte daquela imensidão negra. Eu visualizava com meus pequenos olhos cor de mel, e imerso em meus pensamentos, estarrecido, pensava nos males de minha pobre vida.
Minhas lembranças me sugavam fantasmagóricas, numa dimensão compenetrada e aprisionadora. Eu era por tal, refém destas.
Eu, que não tinha mais que nove anos vividos, para mim, tantos, para os mais velhos, tão poucos...
A claridade da noite, apesar de tão luminosa, pouco clareava meus tenebrosos pensamentos, que me condenavam a um pretenso auto-flagelo. A eterna e e pragmática tortura... A dúvida.
Em meus corriqueiros pensamentos, eu me deparava novamente com aquele demônio branco, vestido com suas roupas sacerdotais, de capuz marrom na cabeça, me olhando com seus olhos de fera que anseia por um belo banquete.
Ele era o que chamavam de albino, o que, só pelo soar da entonação acústica da palavra, já me dava por vezes, calafrios.
Aquela criatura, que todos os finais de semana, arrastava-se até o altar, e rezava mais uma monótona missa de domingo. Volta e meia fitava seus olhos nos meus, e num silencioso palavrear, ditava que a hora "divina", estava. por fim, chegando.
Ao fim das missas, aquele ser, que parecia fugido dum inferno gélido como uma noite de inverno, e tão escuro esse inferno, que mais parecia um vazio, me levava, inocente, para "confessar-me".
Eu, instruído por minha mãe, uma religiosa antiga, e muito amiga daquele homem de Deus, instruia-me a contar a ele todos os meus pecados.
Hei que eu os contava. Dai então aquele homem dizia que, caso eu falasse qualquer coisa que acontecesse naquele confessionário, Deus iria se encher de fúria, montar num cavalo de fogo, e descer dos céus para castigar-me.
Eu, com medo, balançava sempre a cabeça em gesto positivo.
Então, aquele padre, abria a portela daquele lugar medonho com sua batina já desabotoada, abaixava as calças, e já com membro enrijecido, obrigava-me a chupa-lo, para que assim ele pudesse me abolver dos meus erros juvenis.
Eu, um garoto inocente, não sabia o que fazer. Não podia arriscar a ira de todo poderoso Deus, mas aquele homem... era tão nojento!
Eu chorava enquanto fazia tal ato. Por fim, um liquido de péssimo gosto era despejado em meu rosto, e o homem dava uma risada maléfica. Proclamava "Eu o obsolvo em nome do Pai, do Filho, e do Espirito Santo, Amém", e retirava-se da sala.

-

Quando eu era menino, tinha 4 ou 5 anos, minha mãe uma vez, após descobrir uma de minhas artes da qual não me recordo agora, veio para me castigar, e eu, amedrontado, fugi de casa, e corri até não conseguir mais correr, até que, no meio da noite, deparei-me com o alto de um morro. E de lá, eu pude ver toda a magia de uma escuridão estrelada e luminosa.

Foi então que me apaixonei pela noite.

Desde então, sempre que algo me atormentava, eu fugia para o mesmo lugar, deitava-me na relva macia de orvalho, e desfrutava de meus problemas, sem que ninguém ou nada pudesse me incomodar.
Algo havia de errado com aquele ato que o padre me obrigava ao fazer. No intimo do meu ser, eu sabia que aquela criatura horrenda, devia estar se aproveitando de mim.
Mas, como podia eu, um garoto de 9 anos de idade, querer entender os mistérios da vida de um velho albino, que passou a vida inteira estudando e refletindo sobre as palavras de nosso Senhor Jesus Cristo?
Ele era mais velho, mais inteligente, e caso eu falasse algo, era capaz de ele dizer que eu estava pecando, e me obrigasse, como da vez que eu matei as galinhas de uma senhora da vila, a tirar minhas calças, e enfiasse aquele membro horrendo entre minhas nadegas.

Eu tinha medo. E se eu contasse para minha mãe? Mas era capaz de ela, que ia todos os domingos almoçar na casa do padre albino, contasse  meus temores ao padre, e tudo acabasse da pior forma. Sem contar com a chance de, eu violando os termos impostos por Deus para o confessamento, o próprio Deus descesse dos céus, montando um cavalo em chamas, para se ater comigo, como dizia o velho padre.

O que fazer? a dúvida, eterna dúvida, maldita dúvida. Eu não podia fazer nada. Era escravo de minha pouca idade, e sabia que, de alguma forma, aquele urso branco quando ria entusiasticamente de mim, estava mostrando que, no fundo, ele estava abusando da minha inocência.
Eu olhava as estrelas e tinha inveja delas. Tão distantes, tão intocáveis, tão cheias de mistérios. Quem sabe que outras vidas, lá longe, bem além das estrelas, não podiam estar agora, olhando para o mesmo céu que eu, imersas em suas dúvidas, suas vidas, seus problemas?

O frio da noite me castigava, mas eu estava preso. Preso por não saber o que fazer, preso por temer que tudo e todos se voltassem pra mim... Aquele padre, maldito padre, que me fez ter medo do mundo!
O frio foi me fazendo adormecer aos poucos. Um floco de neve caiu no meu nariz, depois outro, mais outro.
Irritado, levantei-me, tirei meu casaco e joguei-me nos pés de um velho carvalho próximo. Depois minha camisa, meus tênis, minha meia... minha cueca...
Por fim, deitei-me na relva nú, e senti o abraço gélido de uma fria noite de inverno, e meus olhos cor de mel encaravam aquela lua, que por trás dos galhos do grande carvalho, ria de mim, por minha incapacidade, por minha inocência, por minha falta de recursos.
A temperatura caia com o passar da noite. Eu sentia que meus dedos dos pés congelavam e se prendiam a escuridão. O congelamento subiu aos poucos para minhas pernas, passando de formigamento para opacidade.
O mesmo ocorria com meus dedos das mãos, seguido dos meus braços, e aos poucos, eu ia adormecendo, e perdendo os sentidos do corpo.
O frio me vencia gradativamente, me consumindo, e expulsando meus pensamentos, ao mesmo tempo que meus olhos se cerravam lentos, e os medos, que outrora me estagnaram, eram substituidos por um sonho.

Sonhei com um abraço de meu pai, meu glorioso pai, que a muito se fora vítima da angústia. Ele me segurava pelos braços e me girava no ar, enquanto eu, esboçando um magnífico sorriso, sorria junto do sorriso dele, numa felicidade inexplicável.
Sonhei com meus sonhos de infância. Uma ora eu era um grande Cowboy do velho oeste, em outra, eu estava sendo o primeiro homem a pisar na lua, outrora, estava eu de rifle em punho, lutando pelos interesses de meu país, e em outro, eu era um homem rico, rodiado de mulheres que me punham uvas e morangos na bocas. Meus sonhos de criança passaram todos nos meus sonhos. Um a um.
Até que enfim, eu sonhei que era uma falcão, e voava poderoso por toda uma floresta. Batia minhas fortes asas no vento, olhava com meus grandes olhos e descobria as lebres, que amedrontadas fugiam para suas tocas. Eu era o senhor alado das matas, e voava irrisório, sob o calor de um imponente sol primaveril.
Aos poucos, enquanto eu batia minhas fortes asas, percebia que não mais sobrevoava uma floresta, mas sim a vila da qual eu havia vivido toda a minha vida.
Lá em baixo, estavam as casinhas do povo da vila. O mercado, a padaria, o açougue... Os lugares onde eu havia passado toda a minha curta infância.
Avistei então a igreja, e lá em baixo, ví o padre albino olhar pra cima, e fazer uma cara de impotência, pois, imponente, lá no alto, ele não poderia tocar em mim.
Avistei depois minha casa, e minha mãe, que de cabelos presos colocava as roupas no varal, olhou para cima, e vendo-me, esboçou um sorriso lindo, que apenas uma mãe poderia esboçar, e, como que por intuição, percebi que ela me desejava boa sorte.
O sol foi sumindo rápido. O calor, que outrora dera força as minhas nobres asas de falcão, agora desaparecia, sendo substituido por um vento gélido e amedrontador. A noite caia rápida e irrisória.
Avistei então por fim, lá do alto, o lugar que eu costumava fugir quando algo me atormentava.
Atônito percebi, que lá em baixo, deitado na relva, agora toda coberta por neve, estava eu.
Percebi que eu dormia um sono profundo e gelado, e, atônito, descobri que talvez, aquele eu deitado lá em baixo, pudesse não ter mais vida.

Enlouquecido, decidi salvar a mim mesmo. Arqueei minhas fortes asas para baixo, e desci num vôo veloz, cortando desesperadamente o vento, tentando chegar a mim mesmo o mais rápido possível. Mas quanto mais eu descia, mais longe eu ficava de mim mesmo. Eu não podia chegar lá, eu não podia me salvar. Aquele eu, cheio de medos e dúvidas, estava sendo congelado.
O que eu podia fazer? Descobri que estava morrendo. Redobrei minha velocidade, afim de salvar a mim mesmo das garras de um inverno que, gelado, me abraçava, e me sugava para dentro de sí.
Minhas asas foram perdendo força, e meus olhos de águia foram fechando-se em sinal de derrota.

Eu fracassara, não havia conseguido salvar a mim mesmo. Havia perdido. Minhas dúvidas não tinham mais importância. O maldito padre não tinha mais importância. Eu só queria ir pra casa.
Por fim, minhas asas perderam forças, e minha descida apressada, se tornou queda. Eu rodopiava e desabava, enquanto ia adormecendo, até que o que eu mais queria aconteceu, mas não da forma como eu esperava.

Desatei no chão.

Minhas asas, que outrora refletiram liberdade, estavam agora quebradas. Olhei para o lado, e vi que ali estava ninguém menos do que... eu. Minha pele branca estava petrificada, com tons vermelhos que me davam uma beleza infantil e inocente. Meus olhos estavam abertos, fitando o vazio, fitando o nada. Meu corpo estava petrificado, como que adormecido, preso num abraço gelado das garras do inverno.
Meus olhos de águia foram se fechando aos poucos. Minha liberdade já era nada mais que um eco do passado. Por fim, quando fechei-os de todo, descobri-me novamente nos meus olhos de criança.
Meus olhos, não estavam, como eu havia imaginado, olhando para o nada. Não. Eles olhavam, ninguém menos que a lua.

Lá estava ela, no mesmo lugar, rindo de mim.

A escuridão a volta dela, que outrora estivera iluminada por estrelas, ia desaparecendo. A lua ia ficando maior, e me consumindo. O frio me abraçava, e me chamava para o doce braço da morte.
Cansado, eu aceitei. Fechei por fim meus olhos, e adormeci naquela gelada e linda noite de inverno.

Fechei meus olhos para sempre, para nunca mais voltar.

Da próxima vez que você avistar um falcão, olhe nos olhos dele. Se ele olhar para os seus, saiba que eu estarei a te olhar.

De um mundo não tão distante do seu...

Num lugar melhor.

Isso realmente acontece.

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Comentários

  1. affffffffff

    nem fudeno q eu vo le essas merdas
    e mt grande

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  2. Penso que nada sei.
    ...
    Quando o aluno está pronto, o mestre aparece.
    O "Mestre"?
    Pode ser uma pedra de Drumond, um falcão, ou até um lente.
    ...
    Se te dizem algo, ou lês algo, extrairás com maior facilidade aquilo que já era sua convicção anterior.
    O aluno está pronto quando se abre a ouvir um pouco "do mesmo" e dele se permitir ouvir algo novo. "Nada sei".
    ...
    Cuidado. Platão não deve apenas proteger-me do outro (meu amigo nada sabe, meu professor nada sabe, o outro nada sabe ...)
    ...

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  3. adoreeei, mto legal teu blogger

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