O Som da Chuva

Por Antonio Fernandes

Eu sentia as pesadas gotas da chuva desabando sobre o meu ser. Todas tão pequenas, todas tão insignificantes, e ainda assim, tão belas.
Ah... a chuva... quando foi a última vez que você apreciou tal divindade da natureza? quando foi a última vez que você deixou-se levar pela beleza das gotas que desabavam sobre o seu ser?
A maioria das pessoas hoje em dia tem medo da chuva. Assim como tem medo das escadas convencionais nos shoppings, e sempre fogem para as escadas rolantes, seguindo a "lei do menor esforço". As pessoas no mundo de hoje perderam a capacidade de apreciar e sentir na pele a liberdade contido no crepitar das gotas, levadas por fortes rajadas de vento, que desabam sobre nossa alma, e nos fazem sentir o mais livre dos seres.
Foi num dia, ou melhor, numa noite como essas, que esse descaso aconteceu.
Era uma noite escura, sem luar e sem estrelas, todas bem escondidas pelas pesadas nuvens negras que se estendiam no céu, de horizonte a horizonte.
E a chuva desabava, linda e tênue, iluminada pelos postes da rua, caia sobre mim, molhando-me e elevando-me a alma.
Eu caminhava pelas ruelas de minha cidade, apreciando aquela beleza natural. Naturalmente, estava sozinho. Como já disse, as pessoas parecem temer a chuva, como se fossem derreter ao crepitar desta neles. Por isso, basta que uma fina garoa caia, e logo se vê todas ruas desertas, exceto por uns poucos corajosos, enfrentando-a com seus poderosos guarda-chuvas.
Eles tem medo da chuva, talvez por que tenham medo da natureza. Eles exploram a natureza, destroem-na, tiram tudo que podem dela, mas vivem com medo de o que a natureza poderá fazer para se vingar deles.

Idiotas.

Eu não temia a chuva, e naquele dia desfrutava de suas gotas com toda a extensão de minha liberdade.
Estava ensopado. Dos pés a cabeça. E caminhava sentindo o ar úmido da noite, ignorando a tudo e todos, ignorando os problemas que outrora tive, ignorando as imoralidades do mundo, ignorando os deuses e os demônios.

Eu simplesmente caminhava.

Até que vi, esboçado bem ali na frente, uma das maiores imoralidades do mundo.
Era um grupo de jovens, de 16 ou17 anos, maduros o suficiente para terem consciência do que fazem, jovens o suficiente para não serem puniveis por lei.
E lá estavam eles, uns 4 ou 5. A princípio pensei que etivessem praticando algum tipo de esporte. Eles se revezaram rindo e chutando alguma coisa, que, com a chuva a minha frente, não podia eu distinguir o que era.
Até que, horrorizado, ví. Eles espancavam um mendigo, um pobre indigente, que provavelmente estivera dormindo antes de ser atormentado por aqueles demônios sádicos.
O homem estava estirado no chão, e suportava os chutes e socos com olhos serrados. A chuva encharcava-o todo, e eu não poderia dizer se ele chorava, ou se suportava tudo aquilo com garra.

Desesperei-me.

Não podia deixar aquela pobre criatura sofrer aqueles abusos, onde estavam os direitos humanos? onde estavam as boas pessoas? onde estavam as autoridades?
Foi então que vi um relance de salvação.
Do outro lado da rua, um policial parecia observar a cena, mas como se não a visse. Ele apenas olhava, com uma mascara do rosto, sem exibir qualquer face que traísse seus pensamentos.
Corri até lá, e afobado, apontei para o mendigo e para os garotos que o espancavam por diversão. Ele balançou os braços, fez uma cara de nojo e exclamou:

- É só um mendigo...

Eu não podia acreditar no que estava presenciando. O policial ignorava a cena. Para ele, aquele indigente não era melhor que um vira-lata, não era nem mesmo humano. Era um nada. Um verme.
Os garotos terminaram sua obra. deram cada um um último chute, e saíram dando risadas. Atrás deles, deixaram um resquício de ser humano, um pedaço de carne caído, perdido para apodrecer no próprio sangue. Sangue esse que mesclava-se a chuva, e dissolvia-se no poder da natureza.
Cai de joelhos, e naquele instante vi o quão insignificante eu era. Não fui capaz de ajudar aquele homem, e agora nem tinha mais coragem de me aproximar e ajuda-lo a se levantar. Eu olhava aquela criatura esparramada, com ossos saltando para fora da pele, cuspindo sangue, e agora, claramente desesperado, derramando rios de lágrimas, nos últimos instantes de sua vida, e eu não podia fazer nada. Estava preso dentro de minha própria consciência, e meu único desejo era que a terra se abrisse e me engolisse, para nunca mais voltar.
O policial foi-se embora sem que eu tivesse notado. Levantei-me. Quando dei por mim, eu também chorava. Deixei aquele pobre homem caído com seus problemas e tristezas, e arrastei-me para casa, envergonhado, ferido pela dura realidade da vida, arrasado com os outros, e comigo mesmo.

E no meu caminhar, sentia as gotas da chuva desabando sobre mim.
Desabando sobre o meu ser.
Desabando sobre minha alma.

O doce e cruel som da chuva...

Isso realmente acontece.

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Comentários

  1. Oie. esqueci de comentar ontem.
    Mas passando pra dizer o quanto gostei desse texto, é importante mostar o quanto esses casos não são isolados,e é preciso ter uma concientização mesmo que seje pelo seu blog. uahsua'
    Beeijos.

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  2. Os olhos estariam serrados tal qual a madeira talhada pelo carpinteiro, seria um neologismo remetendo à Serra do Cipó, ou estariam cerrados?
    Talvez, serrados como na matança de que é vítima (http://www.cifraclub.com.br/xangai/matanca/).

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