O Alojamento

Por Antonio Fernandes

As luzes se apagaram. Alguém e remexeu inquieto na cama, e novamente voltou a reinar um silêncio absoluto.
Cobri minha cabeça com as cobertas, não suportava mais... Era o quarto mês que eu sobrevivia alí naquele inferno. Um centro de educação vigiada. Onde eles viam educação? Não havia como alguém aprender alguma coisa alí dentro, exceto a ser mau.
Eu tinha medo. A maioria dos garotos tinha. Diziam que o menino mais velho, aquele dos cabelos ruivos que eu não recordava o nome, visitava os mais novos de noite para se satisfazer. Só de pensar em uma coisa dessas meu estomago já se embrulhava. e se ele viesse me visitar? Idéias mirabolantes passavam pela minha cabeça. Numa eu acertava em cheio as bolas dele, e fugia correndo. Em outra, eu começava a berrar e acordava o alojamento inteiro. Em uma mais delirante ainda, eu pegava uma faca e arrancava os bagos dele.
Meras fantasias. Eu sabia que se aquele filho da puta levantasse as minhas cobertas e encostasse aquelas pernas frias em mim, como eu já o vira fazer em outros garotos, eu não teria coragem de fazer absolutamente nada. E mesmo que eu fizesse, seria pior. O vigia iria me espancar por acordar a todos no meio da noite caso eu gritasse. Bater nele e fugir ia me render chingos do vigia, e provavelmente eu seria espancado no patio pela manhã. Se eu castrasse o filho da puta, seria espancado pelo vigia, posto na solitária com meias-rações por semanas, e quando eu saísse, o ruivo iria me matar.
Eu não tinha escolha, dependia da mera sorte de não ter sido escolhido por ele ainda, tudo que podia fazer era ficar abaixo do radar do garoto, e rezar para que ele não reparasse em mim.
Derrepente, ouvi passos.
Alguém andava sorrateiramente pelo alojamento. Era ele, eu tinha certeza, e vinha se aproximando.
As meias geravam um som surdo que mantinha o vigia bêbado adormecido, mas eram claras as passadas no silêncio do lugar.
levantei a cabeça e vi sua cabeça ruiva vindo em minha direção. Fechei os olhos e comecei a rezar. "Pelo amor de Deus. Jesus, faça com que ele não me escolha, me ajude senhor, pelo amor de Deus."
Ele chegou na minha cama, virou e veio até perto de mim. Com meu rosto escondido entre as cobertas, ví de relance os olhos verdes dele, mas ele não olhava pra mim, olhava para o garoto ao lado, que quando percebi, tinha os mesmos temores que eu.
O ruivo levantou as cobertas do garoto e se enfiou lá. O garoto deu um gemido, mas ficou calado. Virei para o outro lado. Eu escutava o som constante da cama rangendo, fazendo aquela dança sinistra e medonha de vai-e-vem. Volta e meia o infeliz do garoto escolhido soltava gemidos, que eram abafados pela mão do garoto mais velho, do qual o espancava logo em seguida. Subitamente os barulhos pararam.
Virei-me lentamente, e ví o ruivo desgraçado saindo da cama do meu vizinho. Ele amarrava os calções satisfeito. Percebeu que eu o encarava, deu uma risada sarcástica, se aproximou de mim e falou "Amanhã será sua vez, muleque." Acabou de amarrar os calções e saiu como veio. Suas passadas leves ecoavam pelo alojamento secas e fracas.
Olhei para o garoto ao meu lado, ele chorava. Chorava e soluçava, chorava um ódio misturado com medo e angústia estampados na cara. Como alguém com pouco mais de 13 anos podia ter tantos sofrimentos juntos daquele modo?
Tentei me lembrar o que sabia sobre ele. Diziam que sua mãe havia morrido de doença, e seu pai, morrido na guerra, assim ele foi parar ali, no inferno. Era como nós chamávamos o lugar. Inferno.
Virei para o outro lado e tentei esquecer. Fora alguns socos e empurrões, eu fora pouco abusado. Havia uns coitados que eram abusados frequentemente.
Eu tinha medo.
Fechei meus olhos e adormeci.
Mais uma noite no Inferno.

Isso realmente acontece.

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